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Invadido com aval da Justiça

Em nome de seringueiros, produtores rurais ganham direito sobre 65 mil hectares do Parque Nacional dos Campos Amazônicos, onde não há moradias e desmatamento só aumenta. 

Andreia Fanzeres ·
30 de outubro de 2009 · 14 anos atrás

Visualizar Parque Nacional Campos em um mapa maior

O Parque Nacional dos Campos Amazônicos, gigante de 850 mil hectares entre o sul do Amazonas, Rondônia e Mato Grosso protege, além da densa floresta amazônica, feições únicas de Cerrado. Mas este ano perdeu 65 mil hectares, invadidos em nome da Associação de Produtores Rurais de Machadinho d’Oeste (Apromar). A decisão saiu em março das mãos do juiz Élcio Arruda, da 3ª Vara Cível da Justiça Federal em Rondônia, foi suspensa em junho depois de uma apelação do Ibama e novamente deferida em agosto, provocando um retrocesso nos esforços de fiscalização ambiental empreendidos pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) desde 2007 no parque.

A procuradoria federal especializada, um braço da Advocacia Geral da União, entrou com recurso e espera que a medida seja revertida em caráter liminar no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) na semana que vem. E avisa: mesmo com a sentença favorável aos invasores em vigor, qualquer dano ambiental na área será responsabilizado. “Foi uma surpresa ver que o mesmo juiz que indeferiu a liminar após a nossa ação acabou concedendo tutela possessória à Apromar. Essa decisão vai contra a jurisprudência básica, uma vez que a Apromar admite que é ocupante de terra pública”, explica o procurador federal Daniel Otaviano de Melo Ribeiro.

Se a liminar sair mesmo em favor do governo federal, além da suspensão da sentença, o procurador diz que pretende atacar o mérito da questão. “Paralelamente vamos tomar medidas judiciais para responsabilizar quem está degradando, não vamos ficar de mãos atadas”, garante Ribeiro. Segundo a procuradoria federal, mesmo com a reintegração de posse em vigor, os atos de fiscalização do Instituto Chico Mendes não estão comprometidos. “A tutela possessória tem limitações, mas de fato deixa margem para que os leigos achem que podem fazer o que quiserem e isso é mais um motivo para que as providências sejam tomadas com maior celeridade”, explica Daniel Ribeiro.

Retrocesso na preservação

Diferentemente de muitas unidades de conservação na Amazônia, o Parque Nacional dos Campos Amazônicos, assim que criado, em 2006, teve uma equipe montada para administrá-lo e operações de fiscalização começaram a verificar os danos ambientais em curso na região. Segundo a chefe do parque, Ana Rafaela D’Amico, por causa disso, do final de 2007 a meados de 2009, foi possível manter a área pleiteada pela Apromar livre de invasores. Também foi constatada recuperação da vegetação em alguns pontos, uma vez que a única estrada que dá acesso às principais zonas de desmatamento ficou intrafegável. “Mas em julho de 2009, após a sentença de reintegração, mesmo no período em que ela esteve suspensa, houve novos danos na área, como a abertura ilegal de mais de 30 quilômetros de estrada, novos desmates e áreas queimadas pelos ocupantes”, descreve Ana Rafaela.

A área invadida, chamada pela Apromar de “assentamento São Domingos”, é a porção mais desmatada do parque. Em 2007, foram flagrados nessa região 13 homens que realizavam corte raso da floresta já há 40 dias. Os trabalhadores disseram aos fiscais que eram contratados de Aguinaldo Pereira Lopes, posteriormente autuado por destruir 464 hectares de floresta. Ninguém tinha carteira assinada e as condições de trabalho a que estavam submetidos caracterizava regime de escravidão. Ainda segundo o relatório da fiscalização, nenhum deles residia no local, todos tinham sido chamados em outras cidades de Rondônia para realizar os desmatamentos. Na ocasião, os fiscais não encontraram nenhum morador ao longo da estrada.

Em outra operação, a equipe do parque foi informada sobre uma solicitação de guia de transporte animal para carregar rebanho bovino para dentro do parque em nome de Albertino Marques, presidente da Apromar. O documento não foi liberado por se tratar de área federal protegida. Em outubro de 2007, as únicas áreas com presença de gado parcialmente no interior do parque haviam sido ocupadas por Daniel Alves Ferreira e João Vieira do Prado, integrantes da Apromar e ambos autuados. Sobrevôos revelaram aumento das áreas queimadas e desmatadas em relação ao mês de agosto, além da identificação de seis barracos recém instalados na mesma área em que trabalhadores cortavam a floresta como escravos. Novamente os trabalhadores encontrados no local disseram que não moravam na área e eram contratados por Arthur Benevitz e Antônio Del Rigo. O saldo da fiscalização em 2007 registrou desmatamentos de 2.500 hectares nas áreas invadidas pela Apromar, nenhuma moradia, cultivo agrícola ou de subsistência no interior da unidade de conservação.

Em 2009, em outro esforço de fiscalização, mais dois trabalhadores foram flagrados na região e prestaram depoimento ao delegado da Polícia Federal que acompanhava a ação. Joel da Costa Soares declarou que seu irmão tinha recebido a área como doação da Apromar. Afirmou ainda que nem ele nem o irmão sobrevivem da área, que não existe posto telefônico nem escola na região (como alegava a Apromar) e não conhecia ninguém que resida na área pleiteada pela associação, que o incentivou a ocupar a região um ano e meio antes.

De acordo com relatórios de fiscalização, embora a Apromar diga que defenda os interesses de pequenos agricultores, ribeirinhos e seringueiros, pessoas de alto poder aquisitivo estão tentando estabelecer grandes fazendas, o que fica evidente pelo tamanho dos desmatamentos. “Dos 2.596 hectares desmatados na área do ‘assentamento Apromar’, 2.251 hectares correspondem a apenas cinco infratores, quatro deles já autuados”, destaca o documento, que alerta para falsidade de informações prestadas à Justiça pela Apromar, que chama advogados e empresários de cidades de Rondônia de agricultores integrantes da associação.

Parque Apromar da Amazônia

Fotos de fiscalização do ICMBIO em julho e agosto de 2009

Em entrevista a O Eco em 2007, o presidente da Apromar, Albertino Marques, afirmava que a entidade havia surgido em 2003 para defender os direitos de posse de 186 famílias, reivindicando 80 mil hectares dentro do Parque Nacional dos Campos Amazônicos, onde seria realizado plano de manejo sustentável para extração de madeira. Ele alegou uma suposta permissividade da prática na área em função da existência da Lei de Gestão de Florestas Públicas, mas, que em realidade, se aplica a florestas nacionais, não a parques.

Em outubro, a presidência da Apromar esteve em Brasília para angariar apoio de deputados e senadores no intuito de acabar com o Parque Nacional dos Campos Amazônicos. Segundo Albertino Marques, a comissão foi exitosa, com direito a conversa com Rômulo Mello, presidente do ICMBio. A decisão favorável de reintegração de posse de 65 mil hectares, entretanto, não é suficiente. “A gente não quer só isso. Queremos a nossa posse oficializada”, disse em entrevista recente Marques, que depois de poucos minutos passou o telefone para o assessor da presidência da Apromar, Ozias Lavaggio. “O que queremos é declarar a inconstitucionalidade dos Campos Amazônicos porque não foram feitas consultas, como prevê a lei. Não queremos acabar com o parque, a associação quer cuidar dele, sem armas, sem assustar o pessoal, preservar o seringueirinho, que tem uma pequena roça de mandioca e nunca desmatou nada”, diz o assessor. Em 2004, 2005 e 2006 foram realizadas consultas públicas nas cidades de Manicoré, Machadinho d’Oeste e Humaitá, respectivamente.

A associação diz ainda que a criação do parque nacional foi derivada de uma proposta deles e coloca a ex-ministra Marina Silva na jogada. “Estamos com um projeto de preservação, é o Parque Apromar da Amazônia. Na verdade, apresentamos esse projeto para a ministra, aí ela pegou nossa proposta e criou o parque dos Campos Amazônicos. O projeto era nosso. Também temos nosso projeto de criação da cidade ecológica, a primeira cidade ecológica do mundo”, sustenta.

“Há 280 seringueiros lá dentro, mais de 400 ribeirinhos. Colocaram fogo nas barraquinhas, expulsaram todo mundo, até velhinhos. Nosso pessoal é igual índio, tem costume na área”. A estrada aberta pela Apromar, acesso direto às áreas em processo de desmatamento, é, na visão da associação, uma estrada com objetivo de vigilância. Vigilância em terras da União. “Os madeireiros de Colniza começaram a explorar a área, fizemos porteiras. O pessoal de Humaitá também estava explorando madeira, aí nós fechamos”. Segundo Lavaggio, de 2005 para cá, nunca foi tirado nenhum “pé de madeira” da região.

Chico Mendes x ICMBio

A administração do parque, alvo das maiores críticas da Apromar, é vista como uma equipe que, por fiscalizar, não condiz com as ações defendidas por Chico Mendes. A homenagem ao líder seringueiro do Acre, nessas circunstâncias de conflito, só têm atrapalhado. “O Instituto Chico Mendes foi criado para defender os seringueiros, não é? Mas aqui se expulsa seringueiro, temos seringais plantados há mais de 100 anos. Aquela mulher [chefe do parque nacional] já foi fotografada armada. Agora você me diz, o ICMBio é uma ONG, não é? Entidade filantrópica. Qual é a ideologia do Chico Mendes? Ele deveria ser o instituto que preserva aquele pessoal que nasceu e se criou lá dentro, aquele povo fica chorando, agora não sabe o que vai fazer na cidade, com violência, aumento de prostituição”, argumenta o assessor da presidência da Apromar.

Quando perguntado por que uma associação de produtores rurais está defendendo seringueiros, Lavaggio desconversou. “Não chamamos de associação de seringueiros porque se colocamos assim o pessoal subestima, acha que é só de índio. O pessoal [do parque] não sabe o que é preservação, não conhece uma árvore”, diz. Para o Ministério Público Federal o golpe é antigo. Entre os diversos argumentos que o MPF utilizou na apelação contra a decisão de reintegração de posse, cita que “o fato é corriqueiro na região amazônica, sendo oportuno mostrar algumas das muitas associações de produtores criadas para invasão de unidades de conservação…”. O procurador Heitor Alves Soares enumera, por exemplo, a Associação dos Trabalhadores Rurais de Rondônia, criada para invasão da Reserva Extrativista Estadual do Rio Cautário, Associação dos Produtores Rurais de Verde Vale, que surgiu exclusivamente para tomar áreas da Reserva Biológica do Jaru e Associação dos Produtores Rurais do Sul do Amazonas, com objetivo de invadir a Floresta Nacional de Jatuarana e Parque Nacional do Juruena.

Neste momento, enquanto aguardam a decisão do TRF-1, as equipes do parque tentam evitar novos desmatamentos e desde setembro instalaram uma barreira na entrada da estrada que dá acesso à área pleiteada pela Apromar. O local abriga policiais e fiscais 24 horas por dia para monitoramento. “Essa atividade demanda muitos recursos financeiros e humanos e como a equipe do parque é pequena (quatro analistas) temos que contar com apoio de outras unidades de conservação para manter gente no local todo o tempo”, lembra a chefe dos Campos Amazônicos.

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  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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