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Esaú e Jacó: gêmeos até na natureza

As Irlandas do Norte e do Sul guardam entre si um rancor difícil de solucionar. Mas elas são praticamente iguais em tudo, inclusive no meio ambiente. Nesse ponto, ambas têm muito o que ensinar.

27 de agosto de 2008 · 16 anos atrás
Vista dos campos de touceiras de furze, no Parque Nacional de Wicklow, na Irlanda do Sul (Foto de Ana Leonor)
Vista dos campos de touceiras de furze, no Parque Nacional de Wicklow, na Irlanda do Sul (Foto de Ana Leonor)
A paisagem das duas Irlandas é parecida: montanhas arredondadas e penhascos que caem no mar (Foto de Ana Leonor)
A paisagem das duas Irlandas é parecida: montanhas arredondadas e penhascos que caem no mar (Foto de Ana Leonor)

Já o meio ambiente é muito parecido; na verdade é um ambiente inteiro. O Norte é a extensão natural do Sul. Não há uma transição de biomas como a que separa a Mata Atlântica do Cerrado. Em ambas as Irlandas encontramos uma paisagem de montanhas baixas e arredondadas, cercadas por vastas planícies que encontram o mar em penhascos de beleza cinematográfica. Tanto no Eire quanto no Ulster, a floresta nativa que chegou a cobrir mais de 90% da Ilha foi dizimada e hoje está reduzida a cerca de 7% do território. Também é comum aos dois países o problema da poluição que infecta as dezenas de lagos que embelezam as terras irlandesas.

Nas qualidades, contudo, é que distinguimos Esaú de Jacó. Ambos têm boas histórias para contar. Dublin, a pitoresca capital da República é uma das cidades mais bem servidas por ciclovias que jamais visitei. Praticamente todas suas ruas têm faixas pintadas de grená destinadas a bicicletas. Quando a calçada é larga o suficiente, elas correm por ali dividindo o espaço com os pedestres, mas mantendo uma faixa individual para cada tipo de usuário. Quando os passeios são estreitos, as ciclovias correm pelas pistas de automóveis, quase sempre com uma pequena mureta de proteção segregando os dois espaços. Bicicletários são abundantes e há farta sinalização para orientar os ciclistas, tanto direcional (com distâncias) quanto de segurança. Em menor medida, mas ainda assim com níveis semelhantes aos que vi na Holanda, também há ciclovias nas cidades menores e nas estradas. É um incentivo e tanto. Mesmo com chuva e frio de 8 graus, testemunhei um Eire movido a duas rodas. Haja bicicletas!

Outra qualidade da República é a de ter estabelecido em 2002 uma taxa de 15 centavos de euro para a utilização de cada sacola plástica, que tornou seu uso caríssimo (hoje a taxa é de 22 centavos de euro). Nos primeiros cinco meses após a introdução do imposto, o uso de sacolas caiu 90%, enquanto os 3,5 milhões de euros arrecadados naquele semestre com a “plastax” foram integralmente investidos em projetos ambientais. Nas ruas dublinesas de hoje é raro ver as sacolas de supermercado tão comuns mundo afora. Ali, a maioria das pessoas faz as compras com sacos de pano reutilizáveis. O ganho não é pequeno. Antes de 2002, cerca 1,2 bilhões de bolsas de plástico eram entregues gratuitamente aos consumidores irlandeses todos os anos, ou cerca de 316 para cada habitante do país. Atualmente esse número caiu para cerca de 200 milhões, com o correspondente decréscimo de poluição.

Ainda no Eire, chama atenção a quantidade de moinhos de vento que geram energia limpa, aproveitando as brisas constantes- e geladas- que varrem a ilha. Poupam a atmosfera de ser bombardeada por significativa quantidade de gases contribuintes para o efeito estufa.

No Eire, por fim, visitei um Parque Nacional. Caminhei nas Montanhas de Wicklow, cujas trilhas bem sinalizadas por setas de diferentes cores nada deixam a dever em manejo às suas irmãs ulsterinas. Os 17 mil hectares de Wicklow também são cortados pelo Wicklow Way, um caminho natural de 132 quilômetros que é uma das mais de 30 trilhas de longo curso, implantas na Irlanda do Sul a partir de 1978, todas por sinal bem indicadas, dotadas de mapas de fácil interpretação e com infra-estrutura de acomodação ao longo da rota. No Parque de Wicklow também há um programa de preservação de uma espécie de cervídeo que foi introduzida do Japão em 1860, a Sika Deer (Cervus Nippon Nippon). Em alguns outros países esses ungulados seriam rotulados de exóticos e, sob essa lógica, eliminados. No Eire são considerados naturalizados e estão legalmente protegidos desde 1976. Ainda assim, o Serviço de Parques Nacionais é obrigado a abater cerca de 4.500 Sika Deers todos os anos, de modo a evitar que sua excessiva procriação torne-se um fator de impacto para a flora de Wicklow.

A Calçada dos Gigantes, na Irlanda do Norte, onde é preciso ir a pé até o monumento natural (foto de Ana Leonor)
A Calçada dos Gigantes, na Irlanda do Norte, onde é preciso ir a pé até o monumento natural (foto de Ana Leonor)

Por outro lado (ou do outro lado), no Ulster fiquei muito bem impressionado com a pujança e organização da National Trust, uma ong ambiental que adquire e maneja áreas protegidas. A National Trust foi fundada em 1895 e atua em todo o Reino Unido que também engloba Inglaterra, Escócia, Gales e uns penduricalhos. Só na Irlanda do Norte conta com 46 mil membros contribuintes. Além de cuidar de 300 prédios históricos, a equivalente britânica da Fundação Boticário administra e maneja 240 mil hectares de espaços naturais. Visitei dois deles: Carrick-A-Rede e a Calçada dos Gigantes (Giant´s Causeway). Este é último é o único Patrimônio Natural da Humanidade em terras irlandesas.

Fiquei bem impressionado com o treinamento e a cordialidade dos funcionários, a qualidade da sinalização e o manejo das trilhas. Estas, em seu primeiro quilômetro, são balizadas por corrimãos que evitam o pisoteio da flora adjacente. O chão é batido e endurecido, sendo drenado por canais a intervalos regulares, os desníveis são vencidos por meio de degraus e as áreas de turfa são transpostas por passarelas de táboas. Tratamento adequadíssimo ao impacto a que essas trilhas estão submetidas pela intensa visitação, que chega a quase meio milhão de pessoas por ano. O mesmo tipo de manejo pode ser observado em Carrick-A-Rede. Já a trilha de 16 km que liga as duas unidades de conservação vai ficando mais natural e menos cheia de intervenções de engenharia à medida que se afasta das grandes vedetes turísticas e avança sobre os belíssimos penhascos da costa irlandesa. Em certos locais, onde são poucos os pés que a pisam, a trilha é praticamente natural, apenas uma pequena picada entre as onipresentes touceiras de furze, uma flor amarela que cobre toda a Ilha.

O Ulstre’s way, trilha que dará a volta em torno da Irlanda do Norte quando estiver acabada (Foto de Ana Leonor)
O Ulstre’s way, trilha que dará a volta em torno da Irlanda do Norte quando estiver acabada (Foto de Ana Leonor)

Os jornais da Ilha não se cansam de trombetear os sucessivos esforços dos Governos das Irlandas para aumentar a integração pacífica e total do território insular. Já há vários exemplos de cooperação e cordialidade, entre eles o controle nas fronteiras, que há alguns anos foi abolido entre os dois países. Nesse sentido, o Wicklow Way do Eire, encontra seu espelho no Ulster Way, uma trilha circular de longo curso de 960 quilômetros que, quando pronta, dará a volta na Irlanda do Norte. O Ulster Way já tem cerca de metade do seu traçado pronto mas ainda não se liga ao Wicklow Way ou à alguma das 31 grandes trilhas do Eire. Tudo indica, entretanto, que também nos caminhos naturais é uma mera questão de tempo até que Esaú e Jacó apertem as mãos.

PS: Na Calçada dos Gigantes, há uma estrada que leva até o monumento natural propriamente dito, mas não é permitido dirigir até lá. O visitante é obrigado a estacionar seu carro a mais de um quilômetro do atrativo e andar até à Calçada. Alternativamente, mediante pagamento adicional, pode pegar um ônibus do National Trust. Quem reclama do novo esquema implantado na visitação do Cristo Redentor, no Parque Nacional da Floresta da Tijuca, deveria visitar o único Patrimômio Natural  da Humanidade em terras irlandesas. Ali, ninguém reclama; o meio ambiente está melhor protegido e o monumento continua bastante concorrido.

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