Análises

Crocodilo do Nilo: Deuses da criação viraram sapato e bolsa

Antes venerados, viraram material para acessórios de selvagens “chics”. Encontrar os devoradores de gnus do rio Grumeti inspira humildade.

Fabio Olmos ·
22 de janeiro de 2013 · 11 anos atrás
Um avatar de Sobek toma um solzinho enquanto a aguarda a chegada da migração dos gnus. Foto: Fabio Olmos
Um avatar de Sobek toma um solzinho enquanto a aguarda a chegada da migração dos gnus. Foto: Fabio Olmos

A mitologia é uma janela para a mente humana e a cultura dos povos que as criaram. Sempre achei os mitos de criação a categoria mais fascinante. Entre meus favoritos está uma das descrições egípcias da criação do mundo que descreve como Sobek, o deus-crocodilo, emergiu das águas do caos para criar o mundo – a semelhança com o início do Gênesis não é mera coincidência. Sobek, com sua força e ferocidade, também era o patrono do exército dos faraós.

O sentimento que levou os egípcios a considerarem os crocodilos como divinos é compreensível quando se está diante de um exemplar que chegou à plenitude. Machos adultos do Crocodilo do Nilo (Crocodylus niloticus), a espécie mais amplamente distribuída na África e em Madagascar, em geral atingem 3,5-5 metros, com raros exemplares chegando a 5,5 metros (e uns 750 quilos). O recorde foi um exemplar morto no Lago Victoria: este semi-deus tinha 6,47 metros e pesava mais de uma tonelada (1.090 kg).

O maior nilótico vivo é provavelmente o incrível Gustave, que tem pelo menos 6,10 m. Ele já passou dos 60 anos de idade e inspirou um (péssimo) filme e alguns (melhores) documentários. Estar diante de uma criatura dessas invoca uma mistura de assombro, admiração, beleza e medo que deixa impressões duradouras.

O Crocodilo do Nilo foi a inspiração do bíblico Leviatã, depois apropriado pela literatura político-filosófica-econômica. Houve muita oportunidade de contato entre os autores bíblicos e crocodilos, já que até pouco tempo atrás os nilóticos ocorriam no delta do rio Nilo e dali, em habitats adequados, até o rio Zarqa, um tributário do Jordão (onde seu habitat foi destruído por assentamentos no século passado). Um primo próximo, o mugger (Crocodilus palustres) já foi bem distribuído até a Mesopotamia.


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Crocodilos são criaturas inteligentes, com personalidades diferentes, organização social complexa e cuidado parental mais sofisticado (e eu diria carinhoso) do que o de alguns mamíferos, incluindo pessoas. São adaptáveis, prosperando onde haja água, comida e locais adequados para construir seus ninhos e proteção contra a perseguição humana.

Crocodilos são predadores poderosos. O da foto é um dos que se tornaram famosos através de vários documentários que mostram os crocodilos do rio Grumeti, na Tanzânia, caçando os gnus da grande migração do ecossistema do Serengeti. É óbvio que um predador que faz um antílope de 200 kg virar almoço fará o mesmo com uma pessoa. Crocodilos ainda matam, e comem, talvez dezenas de pessoas por ano, onde quer que haja a combinação de bichos grandes e gente entrando na água.

Mas existe o outro lado da moeda. Literalmente milhões de crocodilos foram mortos por serem considerados “praga”, com campanhas de extermínio em países como Uganda, ou para que sua pele se transformasse em cintos, botas e bolsas usados por certo tipo de primata. Crocodilos sagrados (não foram apenas os egípcios que se impressionaram) foram baleados por missionários cristãos incomodados com a concorrência.

Uma sugestão de leitura sobre a relação entre humanos e crocodilos é o magistral, mas perturbador, Eyelids of Morning, do pesquisador Alistair Graham e do grande fotógrafo Peter Beard, escrito em uma época onde o rifle era uma ferramenta de pesquisa obrigatória.

Hoje, em um mundo cada vez mais lotado onde humanos e o resto da Vida não conseguem conviver, os grandes crocodilos, herdeiros de uma linhagem com 250 milhões de anos, só existem nas áreas mais remotas – onde há poucas pessoas – ou em unidades de conservação, guetos onde permitimos que este maravilhoso animal continue existindo. Ali os dragões esperam, pacientemente, até que o mundo volte a ser deles.

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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