Reportagens

Livres para povoar

Casal que mantém a Reserva Ecológica de Guapiaçu solta mais 10 jacutingas, espécie extinta das matas fluminenses. O trabalho de reintrodução e educação tem dado bons resultados.

Felipe Lobo ·
19 de dezembro de 2007 · 16 anos atrás

A Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua) está se especializando em receber novos moradores. Localizada em Cachoeiras do Macacu, no estado do Rio de Janeiro, a área de 6.600 hectares é uma das mais requisitadas para a reintrodução de espécies ameaçadas de extinção. Desde meados do ano passado, 50 aves já haviam conhecido a liberdade no espaço administrado pelo casal Nicholas e Raquel Locke. No último sábado, dia 15 de dezembro, foi a vez de outras dez jacutingas se juntarem ao grupo dos animais que deixaram a vida no cativeiro para conhecer os caminhos da Mata Atlântica fluminense.

Doadas pela Crax Brasil, reconhecida empresa no setor de criação e desenvolvimento de espécies, as aves chegaram à Regua há cerca de 40 dias, diretamente de Minas Gerais. Depois do período de adaptação ao clima e ambiente locais, o último final de semana foi o escolhido para soltar as jacutingas na natureza. Tudo sob a supervisão da bióloga Christine Steiner, também responsável pela liberação de mutuns no mesmo local.

As portas do viveiro foram abertas por volta das dez e meia da manhã, mas apenas após 40 minutos a primeira jacutinga decidiu se aventurar fora dos domínios reservados. Observadas por uma mutum solta em outubro e que ainda ronda o lugar onde viveu durante o mês de setembro, uma a uma as aves deram seus primeiros passos na vida selvagem. Durante um dia, as passagens de volta à antiga casa continuaram abertas. No domingo, a única opção para os pássaros era aceitar que estavam livres. “Até elas se acostumarem a se alimentar de frutos leva um tempo. Por isso, colocamos ração em três pontos estratégicos próximos ao viveiro”, afirma Steiner

Sob orientação do professor Mauro Galatti, ela ainda tem dois anos pela frente para concluir sua tese de doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), que é justamente a pesquisa sobre adequação dos mutuns à natureza. Como eles foram extintos há bastante tempo das matas fluminenses, há poucas informações a respeito do comportamento da espécie. O mesmo acontece para a jacutinga, integrante da família dos crassídeos, como os mutuns. “Por isso, tentamos identificar como essas aves vão reagir à soltura, quais as características das regiões que irão escolher para viver e o tipo de alimentação preferida. Desta forma, saberemos dizer, mais ou menos, de quantos hectares cada ave precisa para sobreviver e outras necessidades básicas”, avalia.

A união faz a força

O passo inicial para reconhecer a Regua como área adequada à reintrodução de algumas espécies foi dado quando o Ibama publicou, em 2004, o Plano de Ação para a Conservação do Mutum-do Sudeste. Nele, a reserva da família Locke foi indicada como um dos locais mais adequados para a soltura do animal. O útil se uniu ao agradável quando a organização não-governamental britânica Brazilian Atlantic Rainforest Trust (BART), apoiada por doadores adeptos da observação de pássaros, decidiu patrocinar a introdução de mutuns na propriedade. Começavam, neste momento, duas importantes parcerias da Regua: com a Crax Brasil e com Steiner, responsável pelo monitoramento dos animais na vida selvagem.

Depois dos primeiros contatos feitos, a autorização do Ibama para a instalação de um projeto destinado à inserção de aves ainda jovens oriundas dos cativeiros da Crax na Mata Atlântica preservada da Regua era questão de tempo. Concessão em mãos, os primeiros 20 mutuns foram liberados com rádio transmissor em setembro de 2006. Este ano, mais duas dezenas de pássaros da mesma espécie se viram soltos. E os resultados têm se mostrado impressionantes. Apesar de algumas mortes, causadas pela própria natureza ou por ataques de cachorros, cerca de metade ainda está voando pelas áreas de baixada da reserva. “E alguns até subiram os morros”, conta o biólogo Fábio Olmos, um dos autores do Plano de Ação para o Mutum-do-Sudeste.

Apesar do financiamento ser restrito aos mutuns (apenas eles recebem os rádios transmissores e podem ser monitorados pelo aparelho) a estrutura construída também é usada para liberar outras espécies. Fora a jacutinga, mais três são esperadas nos próximos anos. Com a ajuda do canto das aves, é possível dizer onde elas estão e analisar suas particularidades, com menor certeza. A partir dos resultados será possível avaliar o sucesso da reintrodução e as áreas com maior potencial de adequação dos animais.

Importância ecológica

Além de 40 mutuns, o ano de 2007 já tinha sido época da soltura de outras dez jacutingas antes do último sábado. Em outubro, depois de um mês presos no viveiro, os pássaros doados pela Crax foram soltos. A empresa envia o biólogo Edson Valgas uma vez por mês à Regua para ajudar Steiner nas avaliações. “Quando não temos o rádio transmissor, costumamos fazer a avaliação das aves na natureza através de um aparelho chamado pio, que imita o canto de determinada espécie. Desta forma, elas respondem e sabemos em quais regiões se encontram”, explica Valgas.

É essa a principal idéia do projeto: estudar a adaptação de aves jovens que nasceram em cativeiros na natureza através de sua reintrodução aos habitats. O Mutum-do-Sudeste, por exemplo, foi considerado extinto em todo o Rio de Janeiro em virtude do desmatamento da floresta original e da caça predatória. O mesmo se pode dizer da jacutinga, natural da Bahia até regiões da Argentina, mas que no estado só pode ser encontrada no extremo sul do Rio e nas matas no litoral norte paulista. “Hoje, a grande maioria das jacutingas é encontrada nas florestas de montanha em São Paulo, mas às vezes em baixadas também. Supõe-se que elas façam movimentos entre esses ambientes. Com esse projeto na Regua a expectativa é que elas voltem a povoar a região da Serra do Mar”, diz Olmos.

A importância da introdução dessas aves de grande porte para a manutenção dos ciclos ecológicos da floresta é inúmera. “Em áreas onde ainda não são caçadas e que ainda há vegetação intacta, os crassídeos correspondem a uma parcela muito significativa da biomassa dos pássaros”, completa Olmos. Este pensamento ganha ressonância na voz do biólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fernando Fernandez, que acompanhou a soltura das jacutingas no último fim de semana junto com Nicholas Locke, Christine Steiner, Edson Valgas. “Existem plântulas que crescem com pouca luz, porque as outras são maiores e encobrem a entrada dos raios solares. Por isso, elas precisam da excelente reserva alimentar impulsionada pela semente dispersa através das fezes destas grandes aves que se alimentam dos frutos”, conta. Entre elas, estão os mutuns e as jacutingas.

Isso significa, em outras palavras, que levar essas espécies de volta para a vida silvestre é uma importante engrenagem para o ecossistema local. Afinal, o benefício para as mudas que dependem de grandes dispersores de sementes é enorme. Talvez esta seja uma das explicações para a alegria de Nicholas ao ver a primeira jacutinga pôr os pés para fora do viveiro no último sábado. “Elas nunca experimentaram a liberdade antes”, disse, com brilho nos olhos.

Jovens guardas

Nicolas sabe que o principal predador dessas aves é o próprio homem, por isso colocou sete guardas na reserva para afastar os caçadores de plantão. Também promove projetos de educação ambiental na tentativa de conscientizar a população sobre a importância da preservação. Os resultados acabaram aparecendo. “Isso tem sido muito importante, porque conseguimos diminuir em mais de 90% a caça na reserva”, conta.

Auxiliado pela vice-presidente da reserva, a sua mulher Raquel Locke, Nicholas criou um curso de complementação escolar no centro de visitantes, logo na entrada principal da Regua. Neste local, adolescentes de 12 a 18 anos recebem quatro horas semanais de aulas de um biólogo carioca recém formado. Conhecido como “Jovens Guardas”, o projeto não tem exatamente a intenção de formar guarda-parques, mas mostrar o ganho existente na conservação da natureza. “Um dos critérios de seleção que usamos é ser filho de caçador, para explicar à sua família a necessidade da preservação”, diz Raquel.

Para completar, o inglês Nicholas e a Argentina Raquel recebem voluntários de todo o planeta interessados em auxiliar no plantio de mudas nativas da Mata Atlântica e nas outras atividades da Regua, como o incentivo ao turismo de observação de aves. Eles acordam cedo e costumam percorrer todas as trilhas da propriedade pertencente à família Locke desde 1908 para executar serviços ambientais.

Dos 6.600 hectares totais, 4.500 já faziam parte da fazenda dos Locke, outros mil foram comprados e novos 1100 entraram na conta a partir de uma parceria com um proprietário local. Da área total, cerca de dois mil hectares estão dentro dos limites do Parque Estadual dos Três Picos e uma nova região pode ser adquirida em breve para aumentar o corredor ecológico no mosaico. Até lá, os projetos seguem a todo vapor, sempre de olho no vôo rasante de mutuns e jacutingas que voltaram para sua verdadeira casa.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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