Reportagens

Da horta urbana para o prato

Transformar terrenos baldios em hortas não é bom só para a população carente, mas também para quem quer se alimentar melhor e reduzir impactos.

Redação ((o))eco ·
23 de janeiro de 2009 · 15 anos atrás
Dona Maria Luiza da Glória, agricultura que há 20 anos tira seu sustento da horta comunitária urbana em Chapada dos Guimarães, MT. (Foto: Andreia Fanzeres)
Dona Maria Luiza da Glória, agricultura que há 20 anos tira seu sustento da horta comunitária urbana em Chapada dos Guimarães, MT. (Foto: Andreia Fanzeres)
Que bom seria viver numa cidade onde os moradores pudessem comprar alimentos frescos, orgânicos, diretamente das mãos dos agricultores, sem intermediação nem as filas dos supermercados. Isso existe. Basta se dirigir à “horta urbana”, escolher as verduras e legumes que ainda estão na terra, pagar ao produtor que cuida dessa área e, simples assim, contribuir para a perpetuação da atividade.

Há 20 anos, essa rotina garante o suprimento de hortaliças a mercados, hotéis, restaurantes e a mais da metade da população do município de Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso. Sem falar nos consumidores da capital Cuiabá, que viajam 60 quilômetros para prestigiar a única experiência conhecida no estado, que se vangloria por suprir o mundo com soja, mas não consegue investir nos itens básicos na mesa dos brasileiros. “Nos finais de semana, o pessoal de Cuiabá vem todo comprar aqui. Você tem que ver, não sobra nada”, conta Flori Voos, coordenador da Horta Comunitária Santa Edviges.

O gaúcho Flori Voos chegou em Mato Grosso em 1979. Seu ofício era abrir pasto e plantar soja para os outros, floresta adentro. Logo percebeu as contradições brasileiras no campo. Ele lembra que, anos depois da inauguração da horta comunitária, o então líder sindical Lula visitou Chapada dos Guimarães e falou: “Isso é uma reforma agrária urbana”. “Ele gostou demais, disse que ia voltar”, lembra seu Flori. Até hoje ele espera o cumprimento da promessa, feita antes mesmo de Lula assumir o primeiro mandato como presidente.

Em apenas dois hectares, a horta sustenta as 20 famílias de agricultores que diariamente cuidam dos seus canteiros, além de suprir parte da demanda de vegetais das cidades da região. “Dá para tirar mais do que um salário, com certeza. Tem que ter disposição, mas é muito melhor do que trabalhar para os outros”, considera dona Maria Luiza da Glória. Ela está lá desde o início da empreitada. Aos 67 anos, lembra que as pessoas precisam respeitar a sazonalidade das culturas. “Hoje você não acha raiz nenhuma porque estamos na época das águas. Antigamente, nos dois primeiros anos de horta, a gente podia usar veneno. Mas depois não. Agora, quando dá bichinho, temos que deixá-lo comer o quiser”, conta a agricultura. Mesmo assim, ninguém tem saudade daqueles tempos. “Hoje 100% das pessoas compram aqui porque querem orgânicos”, diz Sueli Luiza da Glória, filha de dona Maria.

Em Chapada dos Guimarães, cada família envolvida com a horta contribui com uma média de 25 reais por mês, para bancar os gastos com combustível de um tratorzinho e energia elétrica. Seu Flori, o coordenador, ainda é pago pelo padre Gregório Michels, que doou os recursos iniciais ao projeto. E, apesar do enorme sucesso do empreendimento, até agora a prefeitura só se envolveu cedendo o espaço para os cultivos. Felizmente, em outros cantos do país, administrações municipais têm tido uma participação maior, muito embora as iniciativas sejam ainda minúsculas perto do potencial desse tipo de projeto.

Potencial incalculável

No Rio de Janeiro, a prefeitura encampa o projeto Hortas Cariocas, desde 2006. Cuida de 18 canteiros nos bairros de Paciência, Madureira, Rocha Miranda, Jacarepaguá e Vargem Pequena. Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, 87 pessoas se beneficiam do cultivo em 12 hectares, considerando todas as hortas juntas. Em apenas algumas delas a produção é vendida à população. O encarregado de cada horta recebe uma ajuda mensal de 480 reais, além de bolsas no sistema de “mutirão remunerado”, de 360 reais por equipe.

Canteiro sob torres de transmissão da Eletropaulo, em São Bernardo do Campo, SP. (Foto: AGDS)
Canteiro sob torres de transmissão da Eletropaulo, em São Bernardo do Campo, SP. (Foto: AGDS)

São Paulo também conta com programas de fomento a essas hortas, mas tem a sorte de receber o interesse de outras entidades, como centros de ensino e entidades civis, como a Associação Global de Desenvolvimento Sustentado (AGDS), de São Bernardo do Campo. A não-governamental é pioneira nesse tipo de projeto e inclusive capacitou os técnicos da prefeitura paulistana. Tudo começou em 1984, quando ex-alunos da Universidade Metodista montaram um projeto baseado nos princípios da terapia ambiental, sustentabilidade, relações humanas e geração de renda. Graças a uma parceria com a Eletropaulo, que cede terrenos abaixo das redes de transmissão de até 13 mil volts, a organização coordena os trabalhos de sete hortas comunitárias orgânicas, que atendem atualmente 65 famílias cadastradas. “Nunca tivemos problemas nem acidentes por estarmos próximos às linhas de energia, nem de poluição por estarmos no meio da cidade”, diz a jornalista Inácia Maria de Sousa, coordenadora voluntária do projeto.

Embora a procura pelas hortas esteja diretamente relacionada aos níveis de desemprego na região, nem todos os membros buscam apenas a complementação da renda familiar. Muitos só querem uma atividade para selar mais relações afetivas. “Por aqui há advogados, metalúrgicos aposentados, tem de tudo. Não somos um projeto ‘assistencialista’, nosso interesse é valorizar as relações humanas”, conta Inácia.

Segundo o governo federal, existem diversos outros projetos de hortas comunitárias espalhados pelas regiões metropolitanas brasileiras. No entanto, esse tipo de iniciativa não foi enquadrada nas políticas dos ministérios da Agricultura nem do Desenvolvimento Agrário. Coube ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome encampar a idéia de “suprimento local de alimentos”. 

De acordo com João Augusto de Freitas, coordenador-geral de Apoio à Agricultura Urbana da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, todos os anos o governo publica editais públicos de seleção e/ou justificativa para apoiar projetos de agricultura urbana em regiões metropolitanas. De 2003 a 2008, foram investidos 52 milhões de reais nesse tipo de atividade, em benefício de 368 mil famílias que recebem o Bolsa Família. “Esta ação é estratégica para o conjunto do Fome Zero, pois visa produção, beneficiamento e venda de alimentos de maneira sustentável e agroecológica, que melhore a dieta das famílias carentes no meio urbano brasileiro”, considera.

Verduras praticamente acabam nos canteiros de Chapada dos Guimarães nos finais de semana, tamanha é a procura pela população local e de cidades vizinhas. (Foto: Andreia Fanzeres)
Verduras praticamente acabam nos canteiros de Chapada dos Guimarães nos finais de semana, tamanha é a procura pela população local e de cidades vizinhas. (Foto: Andreia Fanzeres)

Aí está uma das maiores diferenças entre iniciativas da sociedade civil e as que são tocadas pelo poder público. Em Chapada dos Guimarães, a horta não se destina apenas à população carente. Pessoas de todas as classes sociais procuram as verduras dos agricultores urbanos simplesmente porque as consideram melhores, diante das pouquíssimas opções que têm na cidade ou mesmo na capital de Mato Grosso. Não só comer, mas comer bem se transformou numa necessidade nessa região.

Exemplo da ilha

É justamente este princípio que faz de Cuba uma vitrine no quesito agricultura urbana e comunitária. Desde o início dos anos 1990, quando o país perdeu seu maior parceiro comercial, a União Soviética, se viu obrigado a investir nessas pequenas hortas em ambiente citadino. Uma pesquisa da Embrapa Agrobiologia considerou, inclusive, que o país virou referência nesta área e já consegue suprir 100% sua necessidade do consumo de hortaliças. Hoje, a iniciativa governamental é replicada em projetos privados. “Eu já vi experiências assim em Montevidéu, no Uruguai e recentemente me disseram que ela foi exportada até para Nova York”, conta a jornalista cubana Marta María Ramírez. Como diz a agricultora chapadense Maria Luiza da Glória, “a gente tem que trabalhar com a coisa que dá futuro”. Sábias palavras.

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