Reportagens

Lavoura com licença

Lucas do Rio Verde torna-se a 1ª cidade no Mato Grosso a identificar passivos em todas as fazendas. Agora é compensar danos e provar que o agronegócio pode respeitar a natureza.

Andreia Fanzeres ·
16 de junho de 2008 · 16 anos atrás

Quem quiser encontrar o que há de mais avançado até agora no comprometimento do agronegócio com o discurso ambiental deve se dirigir a Lucas do Rio Verde, na região central de Mato Grosso. O município de 365 mil hectares é responsável por 1% da produção nacional de soja e ficou famoso por seus esforços em querer se esverdear. Na realidade, não pretende mudar a típica coloração amarelada das lavouras de soja e milho prontas para a colheita, que lhe garantem empregos e investimentos. Mas almeja reconhecimento mundial por tentar garantir qualidade ambiental, sanitária e trabalhista de sua produção. Num estado como Mato Grosso, só isso já tem sido considerado motivo para grandes comemorações.

Foi assim na última sexta-feira (13 de junho), quando o programa Lucas Legal completou seu primeiro ano. “Depois de uma viagem que fiz pela Europa, eu percebi a preocupação crescente com os produtos vindos da Amazônia Legal”, disse o prefeito Marino Franz, técnico agrícola catarinense que se mudou para a região nos anos 80, quando Lucas ainda era um projeto de assentamento do Incra cercado por Cerrado. Agora que quase tudo se foi e que o mercado europeu começa a pressionar, o prefeito lidera uma parceria com os produtores rurais para ver todas as fazendas de Lucas com licença ambiental.

Por enquanto, isso ainda é um futuro desejável. Mas que não tira do lugar sua vocação pioneira. É hoje o único município que teve todas as suas 670 propriedades georreferenciadas por satélite, e que aprovou uma legislação para áreas de preservação permanente (APPs) mais restrita do que o Código Florestal. Também tem seu passivo ambiental minuciosamente mapeado: 2783 hectares de APPs degradadas e cerca de 30 mil hectares de reservas legais a serem compensadas.

O trabalho contabilizou 237 mil hectares de área plantada e descobriu que tem nada menos que 670 nascentes e mais de dois mil km de rios dentro do território do município, um dos menores da região. E mais: em plena BR-163, onde as traseiras de caminhões e caminhonetes costumam exibir adesivos em repúdio a ONGs estrangeiras, Lucas agradece de joelhos a presença da The Nature Conservancy (TNC).

“Quando se tratava de ONG, a gente via como inimiga, mas se a ONG chegar no agricultor como a TNC chegou em nós, esse estigma muda”, opina Reinaldo Melchior, produtor de Lucas do Rio Verde que, segundo ele mesmo e a TNC, não tem nenhum passivo ambiental em sua propriedade. Infelizmente, ele ainda é minoria. Sr. Melchior e outros cerca de 350 produtores rurais receberam um relatório preparado pela organização que mostra a situação ambiental de cada uma das fazendas do município. E a julgar pela preocupação estampadas no rosto dos produtores, vai ser preciso garantir um acompanhamento individualizado ainda maior. “Todos os dias eu recebo uns 10 produtores, que me procuram para pedir explicações sobre o processo de regularização”, cita Giovanni Mallmann, especialista em conservação da TNC que atende a população em Lucas do Rio Verde.

Atrás do tempo perdido

A primeira etapa do projeto consumiu 500 mil reais investidos pela TNC, Sadia, Syngenta e Fiagril. A partir deste mês técnicos da prefeitura vão visitar as propriedades para conferir os dados do satélite e começarem os projetos de recuperação das áreas degradadas. Em algumas fazendas, como na do produtor gaúcho Darci Eichelt, ela já iniciou. Sob orientação de um manual feito pela Escola Superior de Agricutura Luiz de Queiroz (Esalq), sr. Darci plantou mudas e marcou com uma estaca a distância correta da lavoura para os corpos d’água. Precisa de 150 hectares de reserva legal e mais seis hectares de APP, coisa que, com muito cuidado, só vai ver recuperada daqui a 20 ou 30 anos. (Assista ao depoimento de sr. Darci sobre a mudança de paradigma em Lucas).

A conclusão do licenciamento não durará tanto. “Para fazer o licenciamento vai demorar de três a quatro anos a partir de agora. Queríamos tudo em menos tempo, mas depende da Sema”, informa Luciane Copetti, secretária municipal de agricultura e meio ambiente.

Braço direito do prefeito, Luciane promete boas brigas com o governo estadual contra a aplicação de multas aos produtores que aderiram ao projeto Lucas Legal. Ao protocolar um pedido de licença e reconhecer a existência de um passivo, a legislação estadual prevê multa, mas também um generoso desconto de 90% ao proprietário que se compromete em recuperar o dano ambiental. “Nós não queremos pagar nem os 10%. Queremos tratamento diferenciado aos produtores que estão se esforçando para se regularizar”, diz Luciane. A palavra dos produtores, o prefeito garante, vale muito. Mas para recuperar o tempo perdido, o discurso deverá se transformar em investimento.

Identificar a melhor maneira de investir na compensação das reservas legais é uma das principais tarefas da TNC no projeto. Henrique Santos, coordenador de conservação em terras privadas da organização, garante que ainda existem áreas preservadas ideais para a compensação nos arredores. O desafio é decidir como fazer. “Estamos analisando nosso cardápio de opções, seja para transformar a área em reserva particular, ou doar para o estado regularizar a situação de alguma unidade de conservação, ou quem sabe criar uma nova”, sugere Santos. Para isso, ele avisa que o projeto já começou a conversar com bancos sobre o lançamento de uma linha de financiamento para compensação de reservas legais. O importante será compensar coletivamente o déficit de reservas para que grandes áreas possam ser protegidas em conectividade com outros fragmentos no Cerrado.

“Dinheiro não é problema pra questão ambiental em Lucas. O produtor paga, eu assino embaixo”, diz o prefeito Franz. Melhor assim, já que vai ter que sair do bolso do proprietário o recurso para contratação de consultorias para fazer o projeto de regularização e para comprar áreas de compensação de reserva legal dentro da bacia hidrográfica do Teles Pires, a qual pertence o município. Segundo Luciane, o preço da terra com floresta na região sai por 500 reais o hectare. Uma mixaria se comparado ao preço do hectare desmatado, que pode beirar os 10 mil reais. “Vale mais uma licença hoje na mão do que esse dinheirinho no bolso”, considera o prefeito.

A TNC avisou que nos próximos dias sairá edital para contratação de empresas de consultoria a fim de melhorar a qualidade dos projetos para obtenção da licença ambiental. “Os produtores vão ter que pagar. Os projetos antes eram muito ruins, e isso explica porque dos 200 processos de licença existentes em Lucas apenas sete autorizações foram emitidas nos últimos 10 anos”, lembra Santos.

“Eu agora tenho medo de não vender meu produto, por isso estou dentro do projeto pra conseguir a licença”, destaca Melchior. Por enquanto, isso é apenas um receio. As empresas multinacionais de grãos ainda não têm exigido licença da propriedade, mas os fazendeiros crêem que isto é uma questão de tempo, na medida em que aumentam as exigências e a quantidade de investimentos sob o arcabouço da regularização ambiental (veja exemplos de investimentos no município). Por tudo isso, a prefeitura quer ser aplaudida por ter costurado parcerias e chamado para si a responsabilidade da gestão ambiental em Lucas. Se as cidades vizinhas toparem, pode ser um movimento interessante na meca do agronegócio. Mas o compromisso tem que transcender o discurso. E é isso que todo mundo ainda está pagando para ver.

*A repórter Andreia Fanzeres viajou a convite da TNC.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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