Reportagens

A escalada do licenciamento federal

Número de permissões dispara, satisfazendo setores do governo, enquanto especialistas avaliam que processos precisam de ajustes, bem como o modelo de avanço da infraestrutura.

Aldem Bourscheit ·
27 de julho de 2009 · 15 anos atrás
Ladeira acima: número de licenciamentos cresce desde 1998, conforme dados oficiais. Fonte: Ibama / O Eco
Ladeira acima: número de licenciamentos cresce desde 1998, conforme dados oficiais. Fonte: Ibama / O Eco

A emissão de licenças para obras de grande porte e elevado impacto ambiental cresceu quase 400% desde 2003. O fenômeno é registrado na última década (veja gráfico ao lado), mas se ampliou no governo Lula. Mais de 220 permissões foram concedidas este ano. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) recebeu 188 licenças desde seu lançamento, em janeiro de 2007.

Conforme o presidente do Ibama, Roberto Messias Franco, a maior expedição de licenças está atrelada ao desenvolvimento do país e mostra que o órgão não pode ser mais considerado “atravancador do progresso”. Segundo ele, o fenômeno se deve a aumento da força de trabalho, convênios para consulta de especialistas externos e melhoria das avaliações de impacto recebidas pelo órgão. “Estudos mais bem feitos exigem menos pedidos de informações complementares. Vencemos o desafio de emitir mais licenças sem perdas de qualidade”, avalia.

O Ibama tem mais de 200 técnicos licenciando áreas de petróleo e gás, de infraestrutura e de energia e mineração. Mais oitenta foram chamados recentemente. Há seis anos, eram 130 profissionais, metade não-concursada. Procedimentos menores têm sido direcionados a superintendências estaduais.

Mas essas melhorias não têm evitado batalhas para liberação de projetos ou aliviado as críticas de especialistas. Obras como as usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará, avançam sob ataques judiciais e conturbadas audiências públicas. Já renderam, inclusive, ações do Ministério Público Federal contra o presidente e o coordenador-substituto de Energia Hidrelétrica do Ibama.

A antropóloga Deborah Bronz aponta que barrar audiências e ações judiciais são hoje as únicas formas de atuação para setores contrários ao modelo de avanço da infraestrutura. Para ela, os processos são muito centralizados nos empreendedores, que elaboram estudos de impactos, contatam previamente grupos afetados e reduzem o peso das audiências. “Elas são grandes teatros onde nada se decide. Os acordos financeiros são amarrados antes e dependem da capacidade de pressão de cada parte. O governo deveria ter um papel maior nos licenciamentos”, disse.

Messias Franco, do Ibama, aposta em melhor comunicação e decisões colegiadas para amenizar pressões sobre o setor. “Há um esforço enorme para tornar o licenciamento mais transparente”, disse. Todos os processos devem ser informatizados até o fim do ano. “Além disso, as licenças deveriam ser aprovadas por um conselho com governo, academia, municípios e sociedade. Isso democratizaria o licenciamento”, ressaltou.

Segundo o professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Internacional para Avaliação de Impacto, Luis Sanchéz, há pressão imensa sobre funcionários e dirigentes do Ibama na emissão de licenças, enquanto ações judiciais podem mirar no alvo errado. “O Ibama deveria fazer recomendações com bases técnicas e legais. Se um colegiado não as acatasse, caberia a ele o ônus político”, avaliou. “Ações do Ministério Público muitas vezes não reconhecem que licenças são baseadas em estudos com inúmeras incertezas e que, por mais avaliações que se façam, não serão eliminadas completamente”, ressaltou.

De acordo com o presidente do Ibama, as licenças são emitidas com o balanço de impactos negativos e positivos para o meio ambiente. “O dominante são as informações técnicas. E cada licença tem condicionantes para melhorar os projetos e reduzir os danos ambientais”, disse Franco.

Conforme Bronz, o peso de decidir sobre planos vitais para o governo leva o Ibama a dar peso político para decisões envolvendo obras polêmicas. “Decisões se dão politicamente e não tecnicamente”, avaliou. Ela também questionou a qualidade dos estudos sobre impactos de obras em regiões desconhecidas, como os interiores da Amazônia. “Muitos estudos fazem descobertas inéditas, mas em geral muito pouco se revela, pois anunciar uma espécie nova pode emperrar o próprio empreendimento”, disse.

“Os órgãos ambientais têm exercido um papel educativo (para melhorar estudos de impacto), mas se avança pouco porque algumas empresas repetem sempre os mesmos erros e não melhoram a qualidade dos estudos ambientais”, ponderou Sánchez, da USP.

O problema cresce porque a fiscalização governista sobre os impactos ambientais é mais concentrada durante as primeiras etapas de uma obra do que após sua conclusão e entrada em operação, afirma Sánchez, da USP. “Vale muito prestar atenção ao que acontece depois que o projeto foi implantado. Uma vez concedidas as licenças e encerradas as batalhas judiciais, parece que o caso fica esquecido”, ressaltou.

Custos reais mascarados

Conforme o diretor da não-governamental Amigos da Terra – Amazônia, Roberto Smeraldi, o licenciamento é muito focado nos impactos diretos de barragens, asfaltamentos e portos, enquanto os custos reais de grandes obras sobem com “externalidades”, como aumento da população, crescimento do trânsito em uma estrada ou da navegação em um rio, poluição, maior valor da terra, especulação e desmatamento. “Há erros grosseiros do ponto de vista econômico, pois a conclusão de grandes projetos sempre exige mais investimentos públicos para conter essas externalidades”, disse.

O ambientalista também avalia que os licenciamentos estão se tornando mais politizados, fazendo com que empreendedores com maior peso político-econômico pressionem “de fora” por soluções na área ambiental. “Assim, o licenciamento perde isenção técnica e credibilidade, sendo visto mais como uma obrigação do que um procedimento essencial para a segurança jurídica e econômica da obra”, comentou.

Smeraldi acredita que grande parte das pressões sobre o licenciamento federal seria amenizada com planejamento de longo prazo e resolução de conflitos antes do carimbo nas licenças. “Na área ambiental recaem discussões fora de sua alçada, pela falta de planejamento nacional. O Ibama não deveria ser obrigado a decidir sobre esta ou aquela obra frente o futuro do país”, disse.

Foco de críticas ambientalistas no governo Lula, o PAC é apontado por Smeraldi como um drible na Constituição e fonte de novos embates com a sociedade civil. “O PAC não tem processo estabelecido na Constituição ou na lei. É um projeto de candidatura que substituiu o Plano Plurianual. Está repleto de decisões de gabinete sobre as prioridades nacionais”, comentou.

Para ele, uma solução passa pela emissão de licenças com base em avaliações ambientais estratégicas e planejamento de longo prazo, observado os impactos socioambientais em grandes áreas de influência e não de forma pontual. “Assim tornaríamos mais transparente as motivações para aprovação desta ou daquela obra”, completou.

Pé na tábua

Ainda não satisfeito com os números do licenciamento, Ministério do Meio Ambiente e Ibama prometem para breve o anúncio de mais medidas para “desburocratizar e acelerar” o licenciamento, com o chamado Destrava 2. A idéia é cortar pela metade o tempo médio para se carimbar as autorizações, hoje de cerca de treze meses.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

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