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O novo que já nasceu velho

Inspeção veicular em São Paulo é inútil do ponto de vista ambiental e tem caráter meramente arrecadatório, dizem pesquisadores. Prefeitura defende serviço e promove sua ampliação.

Cristiane Prizibisczki ·
8 de julho de 2009 · 15 anos atrás

São Paulo alcançou em junho a marca de quase 200 mil carros inspecionados quanto à emissão de poluentes. Os números oficiais, divulgados no final da última semana, indicam que a cidade ainda está se adaptando à nova regra, em vigor desde fevereiro para carros movidos a gasolina, álcool, bicombustível e gás, mas os trabalhos avançam. O início da inspeção para caminhões, na última sexta-feira (3), por exemplo, seria reflexo disso.

No entanto, nem todos estão contentes com a evolução das inspeções. Entidades ambientais ligadas à melhoria da qualidade do ar indicam falhas no processo, que influenciaria em toda cadeia de resultados. Na última semana, o Ministério do Meio Ambiente defendeu a inspeção veicular para todo território nacional. A proposta original não foi aceita pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que pediu a criação de um Grupo de Trabalho para discutir o tema.

Falhas gerais

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A inspeção veicular em São Paulo é discutida há mais de 15 anos, mas os procedimentos adotados atualmente são tão elementares quanto sua discussão. O entendimento é da engenheira Carmen Araújo, pesquisadora do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), entidade que trabalha em parceria com a americana Fundação Hewlett na área ambiental.

Segundo ela, as falhas existem em várias etapas do processo, a começar pelo sistema de medição adotado. Licitado em 1993, a tecnologia produz resultados satisfatórios somente para carros carburados, que deixaram de ser produzidos no Brasil há 17 anos. Atualmente, 74% da frota brasileira de veículos do chamado ciclo Otto – carros de passeio e utilitários que têm maior participação na frota nacional – são de injeção eletrônica e catalisador, segundo levantamento do Instituto (gráfico acima).

Nos Estados Unidos, onde a inspeção veicular é realizada há várias décadas com sistemas em constante atualização, tal problema foi identificado em 1992, quando a Agência de Proteção Ambiental Americana (EPA, na sigla em inglês) propôs sua substituição em todo o país. Estudo realizado em 1998 pelo órgão ambiental da Comunidade Européia também concluiu que esse sistema era capaz de identificar somente 15% dos veículos com problemas, o que possibilitaria reduzir não mais que 5% das emissões gasosas. “O mundo inteiro está abandonando o sistema e, no Brasil, nem se discute que modelo de inspeção e de manutenção é esse”, ressalta Carmen.

Outro fator controverso na inspeção paulistana são os tipos de poluentes medidos. Em artigo enviado semana passada aos conselheiros do Conama para balizar as discussões sobre a inspeção, o engenheiro Sílvio Figueiredo, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de São Paulo (IPT/USP), lembra que o procedimento atual não avalia a emissão de óxidos de nitrogênio (NOX), responsáveis pela formação de ozônio (O3), principal componente da poluição que se vê sobre a cidade em dias secos e causador de problemas como rinite, amidalite, sinusite e pneumonia, além do envelhecimento precoce dos tecidos dos pulmões. O composto, em conjunto com poeiras e outros materiais particulados, é considerado um dos mais críticos na Região Metropolitana de São Paulo, segundo Relatório de Qualidade do Ar do Estado de São Paulo, de 2007. O problema é apontado por O Eco desde então.

Como se não bastassem tais falhas no sistema, por decisão da Prefeitura de São Paulo as inspeções são realizadas em carros fabricados somente a partir de 2003. Isto é, carros mais antigos, que têm maior probabilidade de estarem desregulados, ficam de fora. “É claro que carros mais novos são mais limpos e até mais confiáveis, porque os fatores de emissão foram ficando mais restritos e os requisitos para sua regulamentação, maiores, com o passar do tempo”, diz Figueiredo.

O pesquisador salienta que o documento Bases para Implantação da Inspeção Veicular de Emissões não foi feito em nome do IPT/USP, mas que traduz seu entendimento sobre o assunto.

Inspeção e qualidade do ar

O resultado de tais “escorregões” é a reprovação de apenas pequena parcela nas inspeções. De acordo com levantamento apresentado na ultima reunião do Conama pela Controlar, concessionária licitada pela prefeitura para realização das inspeções, somente 2,2% dos veículos leves do ciclo Otto inspecionados até o momento foram reprovados. Segundo Carmen Araújo, os custos dessa inspeção suplantam os ganhos ambientais para esse grupo de veículos inspecionado.

Segundo Carmen Araújo, o número não representa a realidade de São Paulo, onde a quantidade de carros poluidores, quando considerado o conjunto das frotas antiga e nova, é maior. Além disso, uma parcela da reprovação não foi computada por conta da inadequação das emissões, mas por outras falhas no veículo. A pesquisadora salienta ainda que, até o momento, os resultados não foram usados na gestão das emissões. “Hoje não há benefícios para a sociedade, mas somente arrecadatórios para a Controlar”, diz.

Sílvio Figueiredo também vê pontos negativos nesse resultado. “O índice de reprovação de 2% jamais traria os benefícios que estão falando [Controlar e Prefeitura de São Paulo]. A conta não fecha. Para ter redução de 20% nas emissões, como foi divulgado, considerando que só os tais 2% estariam causando toda a poluição, o nível de emissão deles teria que ser muitas vezes maior do que é na realidade”, argumenta.

Visão governamental

Segundo Márcio Schettino, coordenador do Programa de Inspeção Veicular da Secretaria Estadual do Verde e Meio Ambiente, a tecnologia usada para medição de emissões de carros carburados e de injeção eletrônica é a mesma. Além disso, a prefeitura avalia que ela não é defasada. “É a tecnologia adequada em função do que o carro emite”, disse.

Sobre a inspeção feita somente em carros fabricados após 2003, o coordenador argumenta que a escolha foi feita  porque “o ganho é muito pequeno quando feita em carros antigos”. Para chegar a esta conclusão, a Secretaria usou dados estatísticos de emissão e comprovou que carros fabricados a partir de 2003 são responsáveis por 30% das emissões e representam mais de 50% da frota que realmente roda.

Para ele, as críticas são “papo de ambientalista”. As divergências de opiniões, em seu entendimento, é devido aos diferentes métodos de avaliação usados. Sobre a falta de divulgação de dados, o coordenador argumenta que cinco meses é pouco tempo para apresentar resultados, mas que até o final do ano a prefeitura deverá fechar um relatório.

A concessionária Controlar respondeu à reportagem por meio de nota, afirmando que “a tecnologia utilizada é a mesma adotada em inspeções européias e norteamericanas e atende às necessidades de controle de emissões”. Ela também ressaltou que a inspeção é realizada conforme a legislação vigente e dentro das normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas.

“Sobre o sistema de dados, a Controlar atende totalmente às solicitações do poder concedente (Prefeitura de São Paulo) e não cabe a empresa contextualizar sobre ações de política pública, porque essa é uma atribuição do poder concedente”, finaliza a nota da concessionária.

Saiba mais:
Inspeção veicular adiada
O que vem pela frente

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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