Reportagens

Mais quilombo, menos parque

Ribeirinhos viram ‘carambolas’ e pedem 719 mil hectares do Parque Nacional do Jaú. Governo não debate conflito, mas Incra lança mapa fundiário do Amazonas sem parque e com quilombo

Andreia Fanzeres ·
17 de agosto de 2008 · 16 anos atrás

Em 1907 uma família migrou de Sergipe para o Amazonas em busca de trabalho na exploração da borracha. Instalou-se nas margens do rio Jaú, um dos afluentes do rio Negro e lá deu origem a uma pequena vila, com moradores que vivem dos recursos fluviais, do comércio de peixes ornamentais e quelônios. Essa não é a história de um, mas de milhares de nordestinos que no século XX alavancaram a ocupação do estado amazonense. Só que os descendentes daquela comunidade resolveram se diferenciar. Declararam-se remanescentes de quilombo e em 2006 foram reconhecidos pela Fundação Palmares. Agora, 17 famílias reivindicam a demarcação de nada menos que 719 mil hectares de rios e florestas protegidos desde 1981 pelo Parque Nacional do Jaú.

O que aos olhos de conservacionistas parece um absurdo tem ganhado ares de fato consumado nos corredores de universidades, em trabalhos acadêmicos e nos discursos de políticos nas cidades vizinhas. A superintendência do Incra em Manaus já até lançou um novo mapa da situação fundiária do estado do Amazonas, sem os limites definidos das unidades de conservação. Em parte do lugar onde deveria estar o Parque do Jaú, por exemplo, só aparece o desenho da área quilombola pleiteada, como se ela não mais pertencesse à unidade de conservação.

Apesar dessas pressões sobre a área do parque, nada está definido. Tudo está parado numa câmara de conciliação instaurada na Advocacia Geral da União (AGU), que criou esse mecanismo para pôr à mesma mesa governo versus governo em casos como este, de sobreposição de unidades de conservação com territórios quilombolas. O Instituto Chico Mendes (ICMBio) tem seis conflitos desta natureza esperando a vez para o debate. Mas desde dezembro de 2007, quando a AGU criou oficialmente a câmara, nenhuma discussão aconteceu. “Essa idéia de fato consumado constrange o governo. E a solução não está de forma alguma consumada enquanto as discussões não começarem”, rebate Anael Aymoré Jacob, coordenador do bioma Amazônia na diretoria de proteção integral do ICMBio.

Rui Leandro da Silva Santos, coordenador geral de regularização de territórios quilombolas do Incra, garantiu que o relatório técnico que definirá a área quilombola não será publicado enquanto a negociação na AGU não terminar. “Mesmo depois disso, qualquer pessoa ou entidade terá três meses para se manifestar a respeito. E o que estará no laudo é o pleito da comunidade de 719 mil hectares, mas isso não significa que toda essa área seja demarcada”, explica o coordenador, que desconhece a existência do mapa elaborado pelo Incra de Manaus.

Para Silva Santos, uma área tão grande como a pleiteada só pode constar no relatório depois de verificações e justificativas de seus técnicos. Mas Sebastião Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Moradores Remanescentes de Quilombo do Tambor, simplifica o caso. Confirma que a área reivindicada não se refere a antigas ocupações e usos pelos primeiros moradores de seu grupo. “Essas terras vão servir para meus filhos e netos, elas não foram identificadas com base no passado. Isso mostra que temos cuidado com o futuro das gerações”, diz.

Mas não com o futuro da natureza. “A área prevista pega inclusive as cabeceiras do rio Jaú, o coração do parque, uma área muito rica”, diz a analista ambiental Mariana Leitão, que trabalha na unidade de conservação. O Jaú é uma das únicas áreas protegidas do país que abrange integralmente uma bacia hidrográfica, com mais de 2.2 milhões de hectares. Não por acaso ele foi reconhecido pela Unesco como Sítio Natural do Patrmônio da Humanidade.

Os carambolas

Descobrir uma comunidade quilombola e ganhar o direito de pleitear 719 mil hectares na Amazônia (um terço da área de Sergipe) dentro de um parque nacional não foi tão difícil. “Tudo começou há quatro anos, quando, junto com o Ministério Público, a pesquisadora Ana Felisa fez algumas visitas na zona urbana do município, e depois no Jaú, onde ela achava que existiam remanescentes de quilombo”, conta Almeida. A pesquisadora colombiana Ana Felisa Hurtado Guerrero, que trabalha com saúde de populações afrodescendentes na Fiocruz de Manaus, foi procurada pela reportagem, mas se recusou a dar detalhes sobre seus trabalhos na comunidade de Tambor. Limitou-se a indicar o contato do líder comunitário. “Eu não descobri ninguém, eles sempre estiveram ali. E há muitos outros estudos que comprovam isso”, defende-se.

Almeida, de 48 anos, diz que nasceu e se criou no Tambor e mora há apenas 12 anos na cidade de Novo Airão, a cerca de 8 horas de barco até a foz do rio Jaú com o Negro. Até o Tambor, são mais 12 horas de navegação. Ajudado por Ana Felisa, o presidente da associação dos quilombolas viajou o Brasil. “Já fui para Brasília, Fortaleza, Bahia, Belém, São Luiz, Santarém. Ela sempre conseguiu diárias pela Fiocruz e me levou a conferências sobre racismo, segurança alimentar, preconceito”, conta. “Todas essas idéias começaram a nascer em mim. Quando estive em Brasília em 2004, vi que o governo falava muito desse reconhecimento de quilombos, mas as nossas famílias estavam desorganizadas para requerer esse direito”, diz Almeida.

Segundo Almeida, a associação já conseguiu cadastrar 223 pessoas na cidade e outras 103 na vila do Tambor. Almeida admite que nem todas são negras. “Elas cruzaram com outras famílias, mas acreditamos que 95% são remanescentes de quilombos. Temos descendência da África e Sergipe”, diz ele. De acordo com Almeida, o casal que deu início à ocupação em 1907, sr. Jacinto e dona Leopoldina, voltou ao Nordeste tempos depois para buscar outras famílias. Mas hoje, de acordo com analistas do ICMBio, das 15 famílias que vivem na isolada comunidade de Tambor, no rio Jaú, apenas quatro são negras.

A esperança em melhorar de vida, ter casas boas, energia e telefone estimularam a comunidade a se reconhecer como quilombola diante do governo. Mas, na região, volta e meia há quem se declare ‘carambola’ ou ‘calhambola’, por não estar familiarizado com o termo quilombola. Conforme informações do ICMBio, das 15 famílias da vila, pelo menos 10 estão envolvidas com tráfico de animais silvestres, e muitas já foram multadas. “Eles têm expectativa de que se essa demarcação quilombola der certo, o Ibama nunca mais vai poder revistar os barcos. É uma situação delicada”, diz a servidora Mariana Leitão. Ledo engano. “Mesmo se reconhecido o território, a área não vai deixar de ter restrições enquanto não houver a desafetação do parque. E isso só pode ser feito através de um projeto de lei”, diz Luciano de Petribú Faria, coordenador geral de regularização fundiária do Instituto Chico Mendes.

Mariana conta que na época da elaboração do plano de manejo do parque, feito pela Fundação Vitória Amazônia, registrou-se que até os anos 80 existia apenas uma família na localidade de Tambor, que começou a receber mais moradores depois da instalação de uma escola. Só no rio Jaú, existem outras três comunidades ribeirinhas e o reconhecimento de uma delas como quilombola tem gerado conflitos internos. “As outras famílias têm o mesmo histórico, o mesmo modo de vida. Eles não entendem porque os ‘carambolas’ vão poder ficar na área do parque e os outros ribeirinhos terão de sair”, explica.

Essa iminência de expulsão do parque acompanha os moradores desde o início dos anos 80, pois nunca foram reassentados com indenização. Alguns aguardam a chegada de soluções como a decretação de um território quilombola, outros se mudaram para cidades próximas. “Ninguém falou com a gente sobre a criação do parque e 169 famílias foram prejudicadas. Em 1985 os fiscais começaram a pressionar os moradores com ameaças de morte, jogavam nossa comida fora. Por isso fomos para Novo Airão e outros municípios. Mas sempre achamos que tínhamos o direito de viver a vida que a gente vivia”, diz a liderança dos quilombolas, Sebastião Almeida.

O Quilombo do Tambor é tema do 15o fascículo da publicação “Nova Cartografia Social da Amazônia”, do pesquisador Alfredo Wagner, da Universidade Federal do Amazonas. Apesar de toda indefinição e da polêmica desse primeiro quilombo amazonense, a publicação está totalmente difundida. Por tentarem defender a integridade do parque diante de uma história tão cheia de interesses, os servidores do parque passaram a ser acusados de racismo.

Bernadete Lopes, diretora do Departamento de Proteção do Patrimônio Afro-brasileiro, explicou que a Fundação Palmares não tem o papel de comprovar se a comunidade é realmente remanescente de quilombos. “Ela tem o direito de se autodefinir e quem vai dizer que território pertence a ela é o laudo antropológico do Incra”, explicou. Sobre a legitimidade de reconhecer a existência de um quilombo formado 19 anos após a abolição da escravidão no Brasil, Bernadete alertou para uma visão antiquada do termo. “Quem entendia que quilombo era um conjunto de escravos fugidos eram os senhores de engenho. Hoje adotamos o conceito de quilombo contemporâneo, um espaço em que as comunidades têm para se multiplicarem cultural e economicamente, não importa se foram formadas antes ou depois da abolição”, defende.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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