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Tesouro urbano

Ave sumida há mais de um século é redescoberta em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Achado é o mais recente indício que áreas metropolitanas escondem raridades da fauna.

Aline Ribeiro ·
5 de janeiro de 2007 · 17 anos atrás


Há cerca de três meses, o caboclinho ressurgiu nas discussões acadêmicas graças à sorte de um publicitário de Mogi das Cruzes, Antonio Wuo. Em 2004, ele desbravava a natureza da região em busca de imagens para um livro de fotografias. Em uma de suas andanças, um canto diferente nas redondezas do bairro Vila Suíça chamou sua atenção. Não tinha idéia de que pássaro se tratava e teve que fazer três investidas para conseguir fotografá-lo. “Somente na terceira vez consegui pegá-lo num bom ângulo”, recorda. A imagem capturada ficou guardada por dois anos. Em outubro de 2006, Wuo mostrou seu trabalho aos ornitólogos Luís Fernando Figueiredo, do Centro de Estudos Ornitológicos (CEO), e Fábio Schunck. Queria a ajuda de ambos para identificar as espécies que incluiria em seu livro. Imediatamente, eles reconheceram a importância da imagem do caboclinho e mobilizaram a comunidade científica.

Um mês depois, uma expedição de pesquisadores foi palmilhar a região onde Wuo havia fotografado o bichinho. A bióloga Érika Machado, aluna de mestrado da Universidade de São Paulo (USP), fez parte da comitiva. Em 11 de novembro, fotografou e gravou a voz de um macho de caboclinho. “Colocamos o playback [reprodução do canto para atrair as aves] de um outro caboclinho e ele respondeu muito bem, principalmente porque agora é época de reprodução. Defendeu o território, voando pra lá e pra cá”, conta. Quatro dias depois, a equipe retornou à área e, com a ajuda de redes de captura, pegaram um casal. “Medimos bico, asa, cauda, tarso e tiramos o peso. Em seguida, anilhamos e soltamos.” Também foram retiradas amostras de sangue das aves, para a realização de estudos genéticos.

Novas espécies

As expedições devem continuar neste mês. Com duas idas a campo, ainda não foi possível identificar com precisão hábitos reprodutivos, de canto, comportamento e características do animal. Mas já é possível saber que o caboclinho pesa em torno de 9 gramas, tem penas de coloração vermelho-tijolo, voa com bastante agilidade, come sementes e gosta de várzeas de rios e campos. “Sua área de distribuição é muito restrita. É possível que eles façam migrações para o sul do país, mas ainda não sabemos com certeza”, diz Luís Fernando Figueiredo, do CEO.


A redescoberta – ou até mesmo descoberta – de espécies em regiões metropolitanas está cada vez mais comum. Exemplos não faltam. Além do caboclinho e do bicudinho, os biólogos Marcos Bornschein e Bianca Reinert descobriram próximo à cidade de Curitiba, em 1995 e 1997, respectivamente, o bicudinho-do-brejo (Stymphalornis acutirostris), que não é apenas uma espécie nova, mas também um gênero novo, e o macuquinho-da-várzea (Scytalopus iraiensis). Um ótimo sinal, na opinião de Figueiredo, porque indica que os estudiosos estão mais atentos a esses locais, considerados desprivilegiados. “As áreas urbanizadas não têm tanto interesse. Os pesquisadores preferem regiões de Mata Atlântica, que têm mais perspectivas ornitológicas. Nas periferias, a situação é ainda pior, porque tem a questão da segurança. Em alguns lugares, temos de observar aves acompanhados da Guarda Municipal”, comenta Figueiredo.

Ameaças

E é bom que a simpatia dos biólogos por essas áreas não diminua. Muitas delas, inclusive as várzeas onde foram encontrados os caboclinhos, correm sérios riscos. “Tinha muito entulho de construção civil jogado por lá”, enfatiza Érika, ao lembrar que o local é contornado por indústrias. “Outro grande problema é a especulação imobiliária. Até agora, as áreas onde os caboclinhos ficam podem ter sido desprezadas porque são úmidas, trabalhosas. Para que alguma coisa fosse construída ali, os terrenos teriam de ser aterrados. Mas, quando acabarem as outras opções, os homens vão acabar invadindo esses campos”, reforça Figueiredo. A solução, diz, seria a criação de parques municipais para preservar as áreas de várzea ou até mesmo a criação de leis que impeçam construções nesses locais.

A grande procura de caçadores por espécies e subespécies de Sporophila é outra ameaça ao caboclinho. Por serem exímios cantores, os exemplares do gênero são muito visados como aves de gaiola. “Esperamos que as autoridades tomem conhecimento e atitudes”, cobra Figueiredo. O secretário de Controle e Estratégia de Mogi das Cruzes, Aroldo da Costa Saraiva, informa que a prefeitura está “acompanhando” as espécies endêmicas, mas não especifica como. Diz ainda que o município não tem a intenção de criar novas áreas de preservação, porque as que existem já são suficientes e o local onde o caboclinho foi encontrado é adjacente ao parque municipal da Serra do Itapevy.

O caboclinho-de-São-Paulo foi descrito em 1904 como subespécie, mas segundo Figueiredo tem tudo para ser transformado em espécie. “Grosso modo, podemos dizer que ele tem diferenças significativas que podem caracterizá-lo como nova espécie”, diz o ornitólogo. Para que isso ocorra, algum pesquisador precisa se debruçar sobre o bicho e publicar mais detalhes da ave, além de coletar novos exemplares para depositar em museus. É a intenção da bióloga Érika Machado, que vai aproveitar suas idas à Mogi das Cruzes para monitorar os bicudinhos e trabalhar também com o caboclinho. Enquanto a subespécie não vira tema de artigos científicos, está devidamente registrada no livro “Aves de Itapety”, lançado pelo seu descobridor, Antonio Wuo, no mês passado.

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