Reportagens

Mar sem lei

Começa a alta temporada do mergulho no Brasil, e o governo ainda não criou regras para o turismo em áreas marinhas protegidas. Não é por falta de bons exemplos.

Lorenzo Aldé ·
23 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás

Começam os preparativos para a melhor época de mergulho no Brasil. Os amantes do esporte renovam seus equipamentos e planejam viagens para os próximos meses. Em fevereiro e março, as águas da costa brasileira ficam mais transparentes e os principais pontos de mergulho enchem de visitantes amadores e profissionais.

Até porque os locais privilegiados para a prática não são muitos. Nossos 7.637 quilômetros de litoral enganam. O Brasil tem poucas ilhas e biodiversidade marinha relativamente pequena. Isso se explica pelo enorme volume de rios que desembocam no mar, o que diminui a salinidade da água costeira e inibe o crescimento e a diversidade de corais, a base dos ecossistemas marinhos.

Não cabe, portanto, o desperdício. Seria de se esperar que o país cuidasse bem das preciosidades costeiras que tem, conciliando turismo e conservação. Mas não é isso o que se ouve de quem mais entende do assunto, sejam mergulhadores ou cientistas.

“Falta habilidade para controlar o turismo em áreas protegidas. Como o Ibama não tem meios para isso, prefere fechar a fiscalizar”, reclama Cláudio Brandileone, gerente regional da PADI no Brasil e Argentina. A PADI é uma associação internacional que reúne operadores de mergulho de 183 países.

Um dos exemplos de má gestão do Ibama, segundo Cláudio, é a Reserva Biológica Marinha do Arvoredo, maravilha ambiental que abrange ilhas próximas a Florianópolis. Ela é fechada à visitação pública, “mas é sabido que barcos pescam até 500 kg de garoupa todo dia na área”. Em Arraial do Cabo, no estado do Rio, ele constatou outros absurdos. “Aprovaram lá uma reserva extrativista em que um dos artigos é não poder mergulhar à noite ‘porque estressa o peixe’. Enquanto proíbem o mergulho, fecham os olhos para a pesca de arrasto. O Ibama aprovou até um campeonato de caça submarina em que caçaram peixes ornamentais”, conta.

Em Galápagos, novo modelo

Aliar conservação e turismo debaixo d’água é a especialidade de Mabel Augustowski (foto). Bióloga e oceanógrafa, entre 1998 e 2004 ela chefiou a Laje de Santos, Parque Estadual marinho e principal ponto de mergulho no estado de São Paulo. Hoje com normas de credenciamento das operadoras e limites para a prática esportiva, a laje recebe cerca de 7 mil turistas por ano, que podem conhecer um cenário de corais, esponjas, estrelas-do-mar, cavalos-marinhos, cardumes de atuns e peixes coloridos. Com sorte, avistam-se golfinhos e baleias-de-bryde que vêm se alimentar ali em certas épocas do ano. 

A experiência em Santos levou Mabel a organizar um workshop internacional para discutir “Diretrizes para o Mergulho em Unidades de Conservação”. O encontro reuniu 60 chefes de parques e reservas marinhas de todo o país, operadores de mergulho e técnicos do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. A idéia era retirar dali uma portaria nacional com normas gerais para o mergulho em áreas protegidas. Mas o workshop foi em 2001 e, até agora, nada de o governo federal se mexer.

Algumas áreas instituíram regras próprias, como Fernando de Noronha e Abrolhos. Mas em nível nacional, e mesmo internacional, não havia uma metodologia que orientasse o mergulho recreativo em áreas protegidas. Coube a Mabel Augostowski coordenar mais um passo nessa direção. Não no Brasil, mas em Galápagos. Naquele mesmo ano ela foi convidada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para dirigir um levantamento científico que resultasse em normas para o mergulho nas famosas ilhas equatorianas.

O “Projeto de Investigação para o Turismo de Mergulho na Reserva Marinha de Galápagos” — parceria do BID com o Ministério do Meio Ambiente do Equador — levou 14 meses para mapear 62 sítios marinhos na área, dos quais 52 são aptos para o mergulho. Sob certas condições. Para calcular a “capacidade de carga” de cada ponto (número máximo de pessoas e quantidade de visitas), a equipe de pesquisadores (foto) avaliou a fragilidade ecológica dos sítios — com dados como a quantidade de corais e as espécies endêmicas, levando em conta também as marés e as épocas do ano. Depois classificaram o mergulho por graus de dificuldade e criaram um programa de “boas práticas” para treinar os instrutores de mergulho e os guias turísticos. Hoje, quem quer conhecer a vida submarina em Galápagos pode, antes de mergulhar, ver um CD com fotos e vídeos explicando as diferenças e atrativos dos vários pontos das ilhas.

“Melhora para todo mundo. As operadoras de mergulho foram nossas parceiras, porque viram que era um investimento na qualidade do turismo. O visitante retorna. Aumenta o turismo qualificado e diminui o turismo de massa”, resume Mabel. Atualmente na Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, ela quer reacender essa discussão no país: carecemos de mais áreas protegidas e de regras para o ecoturismo submarino. O objetivo é fazer um novo workshop no segundo semestre, marcando os cinco anos do primeiro e avaliando tudo o que foi feito (e o que não foi feito) desde então.

Naufrágio bem-vindo

Outra medida benéfica tanto para o mergulho quanto para o meio ambiente é a criação de recifes artificiais. Eles são cada vez mais comuns em países como Estados Unidos, Canadá e Austrália. No Brasil, a coisa está apenas começando.

No dia 3 de julho de 2003, foi a pique, a 12 km de Guarapari (ES), o navio grego Victory 8B. Ambientalistas e mergulhadores comemoraram o feito: era a primeira vez na América Latina que se afundava intencionalmente um navio para transformá-lo em recife artificial. Agora o enorme casco de 98 metros de comprimento por 24 de altura, com suas 4.100 toneladas, repousa a 35 metros de profundidade. Serve de refúgio aos seres marinhos e de roteiro turístico para o mergulho de observação.

Deu trabalho para ficar pronto. Mais precisamente 500 dias de trabalho para cerca de 500 voluntários, parceiros e amigos da Fundação CleanUp Day, que liderou a campanha para fazer do navio, abandonado no porto de Vitória em 1997, um recife artificial. Em 2001, o Victory 8B foi doado pela alfândega à ong, e começou o mutirão para retirar dele tudo o que fosse prejudicial à natureza, limpando os óleos e resíduos graxos, e depois adaptar o casco à visitação. Quase no fim do projeto, a Petrobras foi vê-lo de perto e concordou em apoiar a iniciativa com 397 mil reais. Estudos ambientais escolheram o melhor lugar para a operação, o Ibama autorizou e o caso pioneiro virou exemplo a ser seguido.

Num local onde o substrato é areia pura — como, de resto, é quase toda costa brasileira — a existência de um obstáculo onde se agarrar é tudo o que esperam os micro-seres marinhos para assentar-se e constituir família. Em pouco mais de um ano, o recife artificial formado pelo navio afundado já recebia colônias de corais, e atrás delas boa diversidade de peixes (clique aqui para ver o navio antes e o navio depois).

“Ele agregou valor à biodiversidade marinha. Hoje tem garoupa de grande porte, badejo, peixes comerciais, corais. O turismo na área aumentou muito”, conta Jorge Lemos, diretor da CleanUp Day, listando outros benefícios dos recifes artificiais: “Eles diminuem a pressão de pesca nos ecossistemas do entorno e dão sobrevida a espécies saturadas, beneficiando a pesca artesanal. A vantagem de afundar um navio desses é que o material vai durar no mínimo 200, 300 anos no fundo”. Nada que dispense, é claro, a necessidade de um bom mapeamento científico antes, e de acompanhamento e fiscalização por parte do governo depois. Ou o feitiço pode virar contra o feiticeiro: o aumento do número de peixes atrai caçadores submarinos.

Embora com navio tenha sido a primeira vez, o afundamento de barcas, bolas de concreto e outros materiais para criar recifes vem sendo usado com sucesso em muitos pontos da costa. O Centro de Estudos do Mar (CEM) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), desenvolveu tecnologia e presta consultoria para vários projetos do gênero no país. No Rio de Janeiro, a Coppe, da UFRJ, também tem um programa especial nessa área. Por que não oficializar a idéia em lei ou política pública? “Poderiam obrigar empresas poluidoras a preparar navios para afundar, como contrapartida ambiental de suas ações. É barato. Tem navio a preço de sucata para afundar”, defende Jorge Lemos.

“Fazer recifes artificiais é uma estratégia muito interessante”, concorda um empolgado Carlos Secchin, colaborador de O Eco e fotógrafo submarino. “São atratores de fauna. É como fazer assentamentos em áreas não povoadas. Colocados numa distância certa da costa, garantem um mergulho de qualidade. Em países civilizados isso cresce muito. Mas aqui no Brasil ainda é um parto”. Problema político, segundo ele. O mesmo motivo pelo qual o mergulho não é regulamentado. “Só teríamos a ganhar organizando o turismo. O comércio vai atrás do que é organizado. Mas os órgãos públicos não querem resolver. Não faltam meios nem gente, o problema é inércia mesmo”, critica.

Se depender dos mergulhadores profissionais, iniciativas em favor da biodiversidade marinha têm tudo para dar certo. “A preocupação ambiental está muito mais forte de cinco anos para cá. Se não houver meio ambiente não há mergulho. Mergulhador não tem nenhum problema em pagar taxa. O problema é pagar e não haver manutenção de nada”, diz Cláudio Brandileone.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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