Reportagens

Um incêndio perfeito

Condições climáticas extremamente adversas, problemas estruturais e uma boa dose de inépcia de governos contribuiram para transformar o Acre num imenso inferno.

Carolina Elia · Andreia Fanzeres ·
25 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Sexta-feira, dia 21 de setembro, foi o primeiro em 15 dias que os habitantes de Rio Branco, capital do Acre, enxergaram o azul do céu. Até então, quando olhavam para o alto, só viam nuvens. Não de chuva, mas de fumaça. O fenômeno acontece todos os anos, produto da estação de queimadas e de uma posição geográfica que faz com que o Acre, além de ter que lidar com seu próprio fumacê, ainda sirva de ponto de convergência para os que têm origem em outros estados amazônicos, como Rondônia e Mato Grosso, e até na Bolívia. Mas em 2005, a coisa toda assumiu proporções assustadoras. A intensidade do fogo no estado foi além das roças e pastos e alcançou áreas de floresta. A fumaça foi tanta que isolou o Acre do país e, dentro dele, cidades da capital.

A falta de visibilidade forçou cancelamento de vôos e impediu o fluxo do tráfego nas estradas. Nas ruas de Rio Branco, onde a qualidade do ar ficou pior que a de São Paulo, máscaras cirúrgicas tornaram-se comuns na indumentária da população. Vários fatores, lembra Foster Brown, professor da Universidade Federal do Acre e pesquisador do Woods Hole Institute dos Estados Unidos, contribuíram para esta situação de calamidade. “Nós tivemos uma ‘tempestade perfeita’ por aqui”, disse ele numa rápida e entrecortada conversa com a reportagem de O Eco na manhã do último sábado. Brown estava apelando ao título de um filme com George Clooney, em que uma série de eventos cria um contexto climático para meteorologista nenhum por defeito, para tentar explicar o que estava acontecendo. Houve de fato um problema climático sem precedentes no estado.

Desde que se começou a medir o índice pluviométrico por lá, há 34 anos, nunca choveu tão pouco. O normal, na média, seria entre 200mm e 250mm por dia. Este ano, ela ficou em 30 mm. Há 120 dias, a água que cai do céu não passa de um chuvisco. A umidade relativa do ar também nunca foi tão baixa, fazendo uma região bem no meio da floresta amazônica atingir nível, apenas 20%, semelhante ao de Brasília, cidade fincada num planalto. A seca deixou o solo e as plantas que crescem sobre ele altamente inflamáveis e aumentou o risco de que uma queimada para limpar uma roça, por exemplo, se espalhasse sem controle para áreas de floresta. Em condições meteorológicas normais, um fogo desses até poderia adentrar numa área de mato que estivesse ao seu lado. Mas não queimaria mais do que o chamado sub-bosque, a vegetação rasteira. A umidade acabaria com o fogo antes que ele chegasse à copa das árvores.

Essa barreira natural, entretanto, foi rompida pela seca e as áreas rurais e de floresta do estado lamberam com uma intensidade jamais vista. Os satélites que servem aos pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostraram que nos primeiros 15 dias desse mês, havia 1 mil 490 focos de incêndio no estado. No ano passado, em setembro, registraram quase quatro vezes menos do que esse número. Das chamas não escapou nem uma Reserva Extrativista que por conta de seu nome de batismo, Chico Mendes, virou símbolo do desenvolvimento sustentável em território brasileiro. O que ainda resta de floresta dentro dela, informavam técnicos do Ibama, ardia forte no último fim de semana.

Esse quadro assustador tem muito a ver com as trapaças que a natureza às vezes prega nos homens. Mas a dimensão do problema ambiental foi agravada pela mão do próprio homem. Nisso, ela contou com uma grande ajuda da falta de estrutura e orçamento que assola qualquer governo no Brasil para lidar com catástrofes deste tipo. No caso do Acre, o estado da ministra do Meio Ambiente Marina Silva e dos irmãos Viana – Jorge, o governador, e Tião, o senador – que há tempos vende a imagem para o resto do país de ser o lugar onde desenvolvimento econômico e meio ambiente convivem em plena harmonia, o desastre contou também com a inépcia das pessoas que ocupam o poder. Apesar de os índices de chuva estarem dando sinais de que seriam baixos desde janeiro, ninguém tomou providências para prevenir o desastre.

Viana só decretou estado de emergência na semana passada. E mesmo com o presságio de seca fora do comum, seu governo em nenhum momento tentou criar um sistema mais sólido de prevenção contra queimadas, ainda que desde o início do ano estivesse óbvio que em agosto, quando começa a estação do fogo, agricultores e pecuaristas iriam “limpar” suas roças e pastos com fogo sobre terreno altamente inflamável. Queimadas são uma questão polêmica no Brasil. Todo mundo aceita a idéia que elas, quando se descontrolam, podem incendiar uma floresta inteira. Por outro lado, não há uma tecnologia tão barata para preparar o solo para a semeadura e isso, num país pobre, conta muito. “No curto prazo, é impossível acabar com as queimadas no país”, diz Adalberto Verissimo, pesquisador do Instituto do Meio Ambiente e do Homem (Imazon).

“A questão, portanto, é buscar meios de se conviver com elas para evitar que se transformem em desastre”, continua. O sistema de prevenção e alerta é um deles e várias localidades na Amazônia têm um. Nele, prefeituras se coordenam para informar umas as outras a quantas andam as queimadas em seus municípios. Se uma foge de controle, as outras são imediatamente avisadas e suspendem a queima que está sendo realizada nos territórios sob sua jurisdição. No caso do Acre, apesar de haver um sistema de prevenção envolvendo 120 associações de produtores rurais, seus mecanismos de coordenação oficiais sempre foram considerados falhos. As condições adversas deste ano tornaram o problema claro. O que piorou muito a situação, além da seca, é que nunca tantos agricultores recorreram a queimadas como aconteceu este ano. E o problema, segundo Sergio Lopes, gerente de produção familiar da secretaria responsável por essa questão no governo do Acre, pode em parte ser creditado ao Ibama.

No ano passado, o órgão distribuiu para as comunidades rurais uma cartilha chamada “Fogo bom é fogo controlado”. Na capa, um sujeito andava por um campo com uma espingarda no ombro e fósforos na outra mão, duas coisas que a lei brasileira não permite que se carregue para dentro do mato. A idéia por detrás do manual era simples. Já que não se pode reprimir as queimadas – por falta de alternativa e de estrutura – vamos ensinar ao agricultor qual a melhor maneira de usar o fogo. Não ocorreu aos burocratas em nenhum momento que labareda é coisa muito séria. Pode até ser controlada, mas para tanto depende de equipamento, um mínimo de ciência e experiência de bombeiro. É tudo que a maioria dos agricultores e pecuaristas na Amazônia não têm. “Muita gente recebeu a cartilha de fogo do Ibama”, diz Sergio Lopes, o que pelo menos ajuda a explicar o aumento na incidência de queimadas no estado este ano.

“Mas é claro que a maioria não conseguiu aplicar o que está escrito nela”, continua. Ou porque não entendeu, ou porque não dispunha dos equipamentos necessários – abafador, bomba de água, máscaras – para aplicar os ensinamentos. Resultado, para controlar suas queimadas, a turma recorreu à improvisação. E o fogo fugiu do controle. Toda esta situação acabou piorando por conta de uma atitude de laissez-faire do governo federal em relação ao problema. Apesar de ter um plano de controle e prevenção de queimadas, a gerência do Ibama no Acre não recebeu o aporte de recursos necessário à sua implementação. Brasília fez uma dotação emergencial de 8, 5 milhões de reais e deslocou equipes para o estado. Mas só no início de setembro, quando já era tarde demais.

O que aconteceu este ano no Acre foi mais do que queimadas irresponsáveis. No Vale do Acre, tudo lambeu, inclusive florestas. E para esta última situação, nem o governo do estado e nem o federal jamais se prepararam. “Como a floresta nunca tinha queimado, nunca foi feito um plano de prevenção para incêndio florestal”, diz Anselmo Forneck, gerente do Ibama no estado. E não foi por falta de insistência do pessoal técnico. Há muito eles sabem que o Acre tem problemas estruturais que numa conjuntura climática adversa como a deste ano tinha tudo para criar um ‘incêndio perfeito’, para empregarmos mais uma vez a metáfora baseada no título do filme de Clooney. A ocupação do estado começou nos anos 70 com assentamentos feitos pelo Incra baseado no que Forneck qualifica de quadrados burros. “Seus limites não respeitavam nascentes nem localização de rios. Há assentamentos onde não existe água”, diz.

O problema foi agravado a partir dos anos 80, com a criação do Fundo Constitucional do Norte, um programa de repasse de crédito subsidiado à agricultores e pecuaristas que financiou boa parte do desmatamento nos últimos 20 anos na Amazônia, Acre inclusive. O Banco do Brasil faz o repasse aos grandes fazendeiros. O dinheiro do Fundo que chega aos pequenos agricultores é repassado pelo Banco da Amazônia. “Há regras para a utilização do financiamento, inclusive de comportamento ambiental, mas eles não fiscalizam”, diz Forneck. Viana, que está no seu segundo mandato como governador, encontrou a coisa desse jeito. Mas não se mexeu para modificá-la. “Entre continuar com os créditos e conseguir votos ou rearrumar a casa na direção do desenvolvimento sustentável, ele ficou com a primeira opção”, diz Verissimo, do Imazon.

De 2003 para cá, o setor agrícola recebeu 87 milhões. Este ano, 1 mil e 800 famílias foram beneficiadas. Para o ano que vem, planeja-se desembolso de 53 milhões de reais para os pequenos agricultores. Com tanto dinheiro na mão para crescer suas roças, não é de espantar que os pequenos produtores sejam hoje os grandes responsáveis pelo desmatamento no estado. Em 2004, essa turma foi responsável por 62% das derrubadas de floresta no Acre. Lopes, da secretaria de produção familiar, afirma que o crescimento desse repasse tem sido bom para o desenvolvimento econômico. “Mas a forma desse crédito não beneficia nem um pouco as propostas de preservação da Amazônia”, reconhece. Além do mais, como prova a atual situação no estado, a bonança econômica pode ser boa no curto prazo, mas é insustentável.

“Há experiências provando que a qualidade de vida e o lucro é maior quando se mantém a floresta de pé”, diz Forneck. Viana, o governador, também parece estar a par de tudo isso. Tanto que uma das primeiras medidas que tomou diante do incêndio que arrebatou seu estado foi fazer reuniões com o seu Conselho de Desenvolvimento Econômico para rever as condições em que são feitos esses repasses. Chegou inclusive a exigir a sua suspensão por um mês. Mas até agora, não deixou claro exatamente como gostaria que as coisas fossem feitas daqui para frente. Se o passado serve de indicação, assim que a fumaça baixar, provavelmente deixará tudo como está. Esta ordem de coisas, no fim das contas, parece ser fundamental para o sustento da dinastia de sua família na região.

* Colaborou Manoel Francisco Brito

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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