Boqueirão da Onça (BA) – Era uma vez um parque. Uma ideia de parque, na verdade. O plano era dar proteção integral a cerca de 900 mil hectares no coração da Caatinga. O parque no Boqueirão da Onça sonhado fica em uma região de difícil acesso, com terra pouco valorizada, poucas estradas (nenhuma pavimentada) e com pouca gente em volta – três habitantes por mil quilômetros quadrados. Perfeito para a conservação.
A necessidade de se criar áreas de conservação na Caatinga é real. É o bioma em região de semiárido com maior diversidade de espécies no mundo – e também o mais populoso. De acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente divulgados esse mês, sua vegetação original perdeu mais de 45% com desmatamento. No último período, o bioma perdeu 1.921 quilômetros quadrados.
O coordenador do bioma Caatinga no ministério do Meio Ambiente, João Arttur Seyffarth, conta que apenas 1,4% da região tem unidades de conservação com proteção integral. “E a maior parte tem pouca estrutura”, reconhece.
Para os moradores do Boqueirão da Onça, a eletricidade ainda está chegando, a televisão é novidade de poucos, celular nem pensar. A flora é complexa e a fauna está em casa. A região está no sertão baiano, próxima do Lago de Sobradinho e, desde que anunciaram os estudos para criação de um parque, em 2002, perdeu cobertura verde e ficou menor. Apareceram mineradoras interessadas no subssolo, empresas de energia eólica disputam o vento e o valor da terra triplicou.
A pressão nasceu na Bahia selvagem e chegou à Brasília burocrata. Os estudos atuais em negociação com o ICMBio, ministério das Minas e Energia e governo da Bahia não fala mais em um grande parque. Os trabalhos preveem a criação de um mosaico de unidades de conservação com uma área de 117 mil ha como monumento natural, 420 mil ha como área de proteção ambiental (APA) e um pedaço de 317 mil ha para o parque nacional.
Mosaico ou retalhos?
A criação do mosaico é um arranjo que tenta a agradar a gregos e troianos. Pela definição legal, a APA é unidade de uso sustentável e permite sua exploração; o monumento natural pode ocorrer em área privada e prevê atividade recreativa e turística; já o parque nacional é terra pública, não pode ser ocupado e garante aos brasileiros uma área de conservação.
O mosaico nasceu da pressão de mineradoras e empresas geradoras de energia eólica. A prova dessa afirmação está nos desenhos dos estudos para criação do parque, de preferência comparando antes e depois da descoberta de jazidas de minério e de vento. O que era parque perdeu áreas para a mineração. As regiões onde estudos prometem vento capaz de mover aerogeradores se transformaram em APA.
O desenho do mosaico é provisório, adverte o coordenação de Criação de Unidades de Conservação do ICMBio, Nelson Yoneda, responsável pelo levantamento do memorial descritivo da região, etapa necessária para o encaminhamento que pretende tirar o parque Boqueirão da Onça do papel. Falta ainda o parecer do governo da Bahia.
Pressão por terras para gerar energia
Rico em vegetação e animais, singular na paisagem, o Boqueirão da Onça é terra de sertanejos – e isso é, antes de tudo, uma sorte. Povo simples, homens e mulheres talhados pelo trabalho no campo e também abertos ao próximo. A região é endereço de pequenos criadores, agricultores familiares, garimpeiros e boiadeiros. No meio rural, a notícia de estudos para um parque já chegou e é vista de forma tranquila, pela maioria. O desenho do mosaico, no entanto, excluiu as áreas das comunidades de fundo de pasto (uma tradicional propriedade coletiva, descrita como tal e com seus direitos garantidos na Constituição do Estado da Bahia).
Nas cidades, a conversa é outra. Entre os proprietários de terras ou herdeiros de centenas de hectares, o gosto pela especulação agrária chegou. O hectare que podia ser comprado por R$ 30 se valorizou, primeiro, com o sonho de uma indenização por causa da chegada do parque e, depois, com o interesse de empresas de energia eólica. Participantes das reuniões sobre os estudos do desenho do parque passaram a ser assediados, como relatou o professor Renato Garcia Rodrigues, da Univasf. “Todos queriam saber onde o parque começava e até onde iria”.
Com a chegada das primeiras empresas de energia eólica, as propostas de arrendamento de pequenas áreas para instalação de torres de medição de vento e a perspectiva de um parque eólico, se tornaram a bola da vez.; Os proprietários informam que a instalação de cada torre de medição gera um contrato de arrendamento da terra de R$ 1,8 mil por ano. Se vier a ser instalada uma torre com aerogerador, seu ganho passaria para R$ 5 mil/ano por cada torre. Um parque eólico suporta cerca de 150 torres. Na melhor das hipóteses, terra passaria a render R$ 750 mil/ano, apenas com o aluguel de pequenas áreas.
Como são mais de sete grandes empresas em disputa pelos melhores pontos, os donos de terras apareceram com suas escrituras (algumas muito antigas, outras incorretas) ou mesmo sem elas. O ex-prefeito de Sento Sé Joaquim Domingos da Silva, “seu” Quinzinho, conta que o preço do hectare está em R$ 100 e pode subir. Gosta da energia eólica e descrê do Parque Boqueirão da Onça. “A energia é que vai trazer estradas, desenvolvimento”, argumenta. “O povo de Sento Sé já foi deslocado com a construção de Sobradinho. Não deveriam fazer isso de novo”.
Com o valor da terra sendo multiplicado por três, a ganância chegou antes do progresso. Há denúncias de grilagem, ameaças da líder de fundo de pasto, escrituras sem correspondência com a realidade e briga entre herdeiros. O professor Edgar Souza Lopes, oficial de registro de imóveis aposentado, conta que, agora, os negócios com terras só se concretizam depois do georeferênciamento por empresa especializada.
O ex-prefeito Juvenilson Passos dos Santos cita, como exemplo de disputa pela venda de terras, a situação do professor Edgar. “Ele comprou de familiares quando não era valorizada e agora está sendo questionado”. O vereador Jackson Coelho de Souza também conhece esse tipo de histórias. “Houve corrida para se comprar terras, só pensando na indenização do governo”, recorda.
Como a perspectiva de um parque agora é colocada em segundo plano, a pressão vem dos que querem fazer dinheiro com os locais que podem ter vento capaz de mover uma turbina de 240 toneladas no alto de uma torre de 84 metros. Há estradas abertas de qualquer jeito, com a passagem de tratores na Serra do Sapateiro e a agente de saúde Carmem Alves Batista, líder do Fundo de Pasto de Campo Largo, afirma ter sido ameaçada de morte. “Esse negócio de ameaça eu deixei para lá, busco a justiça do céu”, prega Carminha, como é conhecida. Ela conta o que tinha por trás da intimidação: o interesse pela instalação de torres de medição de vento nas terras da comunidade.
Energia dos ventos
Enquanto o parque ou mosaico não saem da fase de estudos, as empresas de energia eólica mantêm o cronograma de atividades. Sete empresas foram citadas na região. São elas a Brennand Eólica, Casa dos Ventos, Eólica Tecnologia, BioBrax, Sany, Energisa e Segóia. Os representantes da empresas foram procurados e apenas dois retornaram, mas evitaram conceder entrevista. Quem se prontificou a dar todos os esclarecimentos foi o dirigente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), Ricardo Simões, que logo expôs sua preocupação com a Caatinga. “Como nossa atividade ocupa apenas 3% da área e é compatível com a conservação, nossos interesses não são conflitantes”, argumentou.
Ricardo Simões trabalha no setor de energia e faz distinção do seu modelo gerador. “Nossa fonte é limpa, renovável, não produz efeito estufa e é amigável com a atividade agrícola ou pecuária”. Considera a especulação uma consequência natural da valorização da terra. Desconhece casos de grilagem e para tanto utiliza um raciocínio. “Nosso setor é muito técnico e só quem detém o conhecimento sabe o local onde as empresas têm interesse”.
O diretor da ABEEólica afirmou que os negócios que estão sendo promovidos com os donos da terra terminam por contribuir com a regularização fundiária da região. “Muitos não possuem escritura e precisam regularizar seus documentos. Tudo deve estar legal, os tributos passam a ser pagos”. Ricardo Simões afirma que as empresa não pressionam comunidades, com as de fundo de pasto. “Todos têm de concordar em obter uma renda, ou nós não podemos instalar torres”.
Verde e branco
O Boqueirão da Onça é a cara da Caatinga em uma de suas manifestações mais exuberantes. O bioma tem uma beleza que precisa ser descoberta. Muitas vezes sua flora é arbustiva, outras cheia de árvores. Na época das chuvas, é verde vivo. No tempo da seca, as plantas dispensam as folhas como estratégia para poupar energia. A mata fica branca, resiste ao sol e à escassez de água.
Um dos inventários feitos pelo Centro de Recuperação de Áreas Degradas (Crad) da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf), em 2006, mostra a importância do Boqueirão com suas espécies endêmicas, raras e algumas ameaçadas. Em números brutos, a região possui 932 espécies de plantas, 380 exclusivas da região. O Boqueirão da Onça tem suas curiosidades. Há momentos em que no meio da Caatinga aparece um Cerrado, na Serra do Mimoso.
Outro estudo de pesquisadores do Crad compara imagens do satélite Landsat feitas em 2000 e 2009 e faz um estudo capaz de identificar áreas de degradação vegetal. Ao analisar a área em 2000, o estudo estima “em 89% a cobertura vegetal no grau de transição a conservada e 11% áreas degradadas”. A análise é grave: “Houve aumento da substituição da cobertura vegetal por atividades econômicas de caráter criminoso e clandestino”, escrevem os pesquisadores liderados pelo professor José Alves Siqueira.
A fauna é rica e inclui onça pintada. O maior dos felinos das Américas está por lá. A presença de onças representa um indício de qualidade do habitat, explica a pesquisadora Cláudia Bueno de Campos. “Como a onça é um predador no topo da cadeia alimentar, sua presença significa que os outros animais que servem de alimento para ela vivem lá e encontram seu alimento na região”, explica a bióloga.
O trabalho de Cláudia Campos para o Centro Nacional de Pesquisas e Conservação de Mamíveros Carnívoros (Cenap) já registrou imagens das onças através de armadilhas fotográficas. Ela é outra admiradora da riqueza biológica da região e defende iniciativa pela conservação rigorosa do Boqueirão da Onça.
Além de onças, o Boqueirão também abriga veados e raposas, encontrados até nas estradas. Os primeiros estudos do ICMBio registraram grande diversidade de espécies, mesmo sem levantamento faunístico. Araras vermelhas, sabiás-gongás, picapauzinhos, abelhas raras e espécie endêmica de anuros.
Cenário
Boqueirão é como se chama, na Bahia, uma garganta entre serras, normalmente com um rio. A paisagem do Boqueirão da Onça tem planos, maciços e serras com mais de 1.200 metros. Possui as nascentes e as planícies fluviais dos rios Jacaré (ou Vereda do Roma) e Salitre (ou Gramacho ou Vereda da Tábua), que deságuam no Velho Chico.
Há notícias de exploração de ferro e manganês, nas proximidades do Boqueirão. No interior, há garimpos de cristais, citrino e ametistas, entre outras pedras. A região também possui cavernas de dimensões sem par, de máxima relevância na avaliação do chefe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav) do ICMBio, Jocy Cruz. Na margem esquerda do Rio Pacuí, ocorrem várias dessas formações geológicas. O destaque é a Toca da Boa Vista, a maior caverna do Hemisfério Sul, com 100 quilômetros medidos. O sistema é de interesse geológico, paleontológico e arqueológico. As cavernas, nos novos estudos no ICMBio, ficaram na área destinada ao monumento natural.
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“Houve corrida para se comprar terras, só pensando na indenização do governo”…O problema do Brasil é brasileiro!
Kd os direitos humanos!!!!!!
é muito triste, e revoutante ver que a nossa caatinga está sendo destruida.