“De onde vem a carne que eu como?”. Esta é uma pergunta que moradores do Sudeste do país podem começar a se fazer. Uma pesquisa divulgada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) revela que, de toda carne produzida em áreas desmatadas na floresta amazônica, 5% é exportada enquanto 95% é consumida no Brasil. Deste montante, 69% vai parar no prato de consumidores do Sudeste, especialmente do estado de São Paulo, conforme demonstração de estudos apresentados no evento Conexões Sustentáveis, que aconteceu em outubro na capital paulistana.
Como grande parte dos pecuaristas desmata ilegalmente, estas informações mostram que, indiretamente, quem compra carne bovina no estado financia o desmatamento da Amazônia e demais crimes que se escondem por trás de sua cadeia produtiva. A culpa é do consumidor? Não. A pecuária extensiva na região é extremamente problemática desde a abertura de pastagens para criação de gado até a venda em supermercados, quando a carne está a um passo de virar bife no prato das pessoas.
A palavra dos frigoríficos
A reportagem de O Eco entrou em contato com os frigoríficos JBS Friboi, Marfrig e Quatro Marcos para indagar sobre informações publicadas no estudo Conexões Sustentáveis, uma iniciativa do Fórum Amazônia Sustentável e do Movimento Nossa São Paulo, com execução das organizações Papel Social e Repórter Brasil. Há controvérsias. Quatro Marcos – Rosana Sorge Xavier, cuja família administra o frigorífico, figura em nono lugar no ranking dos 100 maiores desmatadores da Amazônia. No total, ela devastou ilegalmente 12.640 hectares de floresta, o que lhe rendeu uma multa de aproximadamente R$ 48 milhões. – Unidades da empresa apresentam graves problemas ambientais e trabalhistas. A unidade de Juara, no bioma amazônico, teve suas atividades embargadas pelo Ibama em junho de 2008 por operar sem licença ambiental. Resposta do Quatro Marcos: Marfrig O que o relatório diz: Resposta da Marfrig: Para se certificar de que o gado comprado não veio de áreas de floresta desmatadas ilegalmente, afirma solicitar de seus fornecedores “licença ambiental, verificação de regularidade em cadastro do Ibama, cadastro de propriedade rural e outros documentos ambientais”. Afirmou, ainda, que o grupo tem instalado Comitês de Gestão Ambiental em todas as suas unidades. No que se refere a investimentos na rastreabilidade da carne para garantir um produto livre de ilegalidades fundiárias, trabalhistas e ambientais, limitou-se a responder que “considera a comprovação de origem do gado a ser abatido prática essencial para conforto de seus clientes”. Em seu site, a empresa afirma utilizar o Sisbov. JBS Friboi O que o relatório diz: Resposta da JBS Friboi: A assessoria também afirmou que a empresa “investe constantemente em meio ambiente” e que trabalha na conscientização de seus fornecedores “sobre melhores práticas”, mas não explicou como. Afirmou que, em 2005, assinou o Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo, utilizando-se da lista suja para não adquirir “produtos de fazendas que usam mão de obra escrava”. De acordo com o relatório O Reino do Gado, o frigorífico já manteve relações comerciais com a Agropecuária Roncador em Querência (MT), pertencente ao grupo Soares Penido, citado na lista suja de 2007. A empresa não respondeu como se certifica de que o rebanho comprado não veio de áreas de floresta desmatadas ilegalmente, se está disposta a pagar o preço da rastreabilidade para comprovar a redes de supermercados que a carne veio de fontes que respeitaram leis fundiárias, trabalhistas e ambientais e como verifica se o gado comprado para o abate está em bom estado de saúde. |
Para começar, a febre aftosa em regiões do Sul e do Sudeste aliada à expansão de cana-de-açúcar nestas regiões (mais o Centro-Oeste) e à terra barata ou sem custo na Amazônia representam alguns dos fatores que “empurram”, cada vez mais, a pecuária para o Norte do país. O gado criado na Amazônia Legal representa 36% da produção nacional. Além disso, entre 2001 e 2006 o rebanho na região aumentou 75%. Atualmente, são 74 milhões de cabeças de gado. Longe de ser coincidência, a pecuária é responsável por 80% da área desmatada na Amazônia, transformando-se na causa número um da destruição da maior floresta tropical do planeta.
Para especialistas, nem mesmo fatores econômicos justificam o crescimento da pecuária. “A renda média do setor é inferior à da caderneta de poupança. Em termos de negócio e rentabilidade, esta é a pior alternativa para o Brasil. É uma cegueira não querer discutir isso abertamente”, afirma João Meirelles Filho, diretor do Instituto Peabiru e autor do Livro de Ouro da Amazônia. “A pecuária rende, em média, de R$ 95 a R$ 100 por ano por hectare. Uma castanheira no mesmo período dá o dobro de retorno financeiro”, completa Mario Menezes, diretor da Amigos da Terra – Amazônia Brasileira.
A pecuária gera prejuízos ambientais – aberturas de pastagens promovem queimadas que liberam CO2 e fazem do Brasil o quarto maior emissor de gases estufa do mundo, isso sem falar na perda de biodiversidade e no gás metano expelido pelo rebanho. É responsável por problemas fundiários, já que muitos se apropriam de terras públicas ilegalmente. “Eu desafio todas as fazendas da Amazônia, quero ver uma que esteja dentro da lei principalmente no que se refere às questões ambientais, sem contar a legislação trabalhista” afirma Meirelles Filho, que lembrou de outro ponto importante: a questão social.
Lista suja do trabalho
Conforme O Reino do Gado, estudo feito pela Amigos da Terra-Amazônia Brasileira, em janeiro de 2007 a pecuária bovina na Amazônia era responsável por 62% dos empreendimentos que integram a lista suja do trabalho escravo, do Ministério do Trabalho. Um levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) afirma que, até julho deste ano, 58% das fazendas fiscalizadas pelo grupo móvel do governo federal tinham a criação de gado como atividade principal.
O relatório Conexões Sustentáveis SP-Amazônia: Quem se Beneficia com a Destruição da Amazônia explica que Mato Grosso e Pará (respectivamente primeiro e quinto maiores produtores de carne do país) são “campeões históricos na incidência deste crime”, o que comprova a ligação direta que existe entre pecuária e exploração de trabalhadores submetidos à situação análoga à escravidão. Cita, inclusive, nomes e festivais de absurdos. O pecuarista Antenor Duarte do Valle, por exemplo, figura na lista suja desde 2004 e já vendeu gado aos frigoríficos Marfrig (fornecedor de carne às principais redes de supermercado do país) e Quatro Marcos que, por sua vez, é administrado pela família da pecuarista Rosana Sorge Xavier, ocupante do nono lugar na lista dos 100 maiores desmatadores da Amazônia, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente.
Conforme o que foi falado no evento Conexões Sustentáveis e também de acordo com especialistas, outro fator preocupante que envolve a pecuária na Amazônia é a falta de rastreabilidade completa da carne para o mercado interno, ou seja, rastrear o gado desde sua criação e abate até chegar nas prateleiras dos supermercados para que redes varejistas possam fornecer na própria embalagem informações sobre a origem geográfica do produto a ponto de poderem afirmar com precisão se 100% da carne comercializada pelo estabelecimento veio ou não do bioma Amazônia e de terras comprovadamente sem nenhum envolvimento com crimes ambientais, fundiários e trabalhistas.
Em janeiro de 2002, o Ministério da Agricultura criou o Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov). A certificação, referente apenas a condições sanitárias do animal, não abrangendo fatores ambientais e sociais, é uma exigência da União Européia, mas seu uso no mercado interno é opcional. “Frigoríficos e o governo federal aceitam que o europeu tenha mais direitos que o próprio brasileiro. Estão chamando o brasileiro de segunda classe, pois recebe um produto de menor qualidade. Não se pode aceitar que o que é exportado tenha um nível diferente do que é vendido aqui. O brasileiro deveria tomar isso como uma lição e se equiparar”, afirma Meirelles Filho. “A exigência de consumo do lado de lá é muito maior do que do lado de cá. Depende do consumidor”, completa Adriana Charoux, pesquisadora em Responsabilidade Social Empresarial e Consumo Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Responsabilidade do varejo
Como parte da campanha Mude o Consumo para Não Mudar o Clima, feita em parceria com a ONG Vitae Civilis, o Idec realizou, em junho deste ano, um questionário com os grupos Pão de Açúcar, Wal-Mart e Carrefour para averiguar, entre outras coisas, se sabiam se os bois teriam vindo de áreas de desmatamento ou de fazendas com trabalho escravo. O resultado, de acordo com o instituto, foi insatisfatório. “Apesar de informarem que possuem sistema de qualidade e controle, não apresentaram nenhum documento comprovando isso. Os dados apresentados foram genéricos, o que constata falta de informação. O elo da cadeia ainda não se fecha completamente. Fizemos, também, perguntas aos frigoríficos e, em 15 dias, que é normalmente o prazo que damos, não obtivemos nenhuma resposta – o que, por si só, já é uma resposta válida e significativa”, afirma Adriana Charoux. Vale lembrar que a maioria dos quase 200 abatedouros que operam na Amazônia é ilegal.
Por meio de sua assessoria, o Carrefour afirmou que “comercializa unicamente carnes de frigoríficos que utilizam o Sisbov”, lembrando que o mesmo não abrange fatores ambientais e trabalhistas. Disse, também, que “parte da carne comercializada é proveniente de fornecedores da Amazônia Legal”. Afirmou que “toda carne comercializada pelo Carrefour segue a legislação brasileira vigente e é legal do ponto de vista trabalhista, ambiental e fundiário”. Fui conferir, como consumidora, em um dos supermercados da rede em São Paulo. “Nossa carne é de qualidade, mas não sei te responder sobre a origem do ponto de vista trabalhista, ambiental e fundiário. Agora até eu fiquei com esta preocupação. Sua pergunta foi além do que eu esperava”, afirma a pessoa que me atendeu.
O Grupo Pão de Açúcar, por sua vez, afirmou que após a assinatura do pacto feito no Conexões Sustentáveis, pretende subsidiar seu consumidor de mais informações “com objetivo de ampliar sua consciência acerca da importância do tema”, mas não respondeu se, indagado no ato da compra, saberia informar se a carne veio ou não de produtores legais do ponto de vista trabalhista, ambiental e fundiário. O Wal-Mart não respondeu a todas as perguntas e afirmou que, a partir da assinatura do mesmo pacto, passará a exigir mais informações de seus fornecedores. “O poder público e o setor privado – principalmente o varejo, pois está em contato com o consumidor – tem que oferecer um produto sustentável, adequado e legal, do ponto de vista social e ambiental. É preciso pressionar ‘para trás’, monitorar, rastrear”, afirma Mario Menezes.
“Se o Wal-Mart – pegando uma das três redes como exemplo – afirmar ao mundo que se recusa a ser conivente com o desmatamento da Amazônia e que não vai comprar carne do bioma, certamente assumirá uma posição bastante revolucionária, corajosa e honesta. Provavelmente teria um prejuízo, pois não se substitui fornecedores e nem preço de imediato. No entanto, o simples anúncio desta decisão deverá ter um reflexo muito positivo na imagem da empresa. Digamos que o valor de mercado do Wal-Mart subisse 1% por sua decisão – isto equivaleria a US$ 2,1 bilhões, mais do que a Amazônia fatura com a carne bovina por ano”, explica João Meirelles Filho, do Instituto Peabiru.
Especialistas afirmam que, para conter a pecuária extensiva e ilegal na Amazônia, é necessário que leis trabalhistas, de crimes ambientais e de vigilância sanitária sejam cumpridas. O governo precisa atuar com mais firmeza nas fiscalizações e bancos, por sua vez, poderiam pensar duas vezes antes de aprovar empréstimos a empreendimentos ligados ao setor localizados na Amazônia. Nas palavras de João Meirelles Filho, “já deveria ter se parado de abrir crédito à pecuária no momento em que o governo constata as conseqüências desta prática”.
Papel do consumidor
Dentro da problemática cadeia produtiva da carne o consumidor tem enorme responsabilidade. “A compra é um ato político poderoso”, diz o relatório Conexões Sustentáveis. “Melhor do que me tornar fiscal disso seria parar de comer carne. Como ainda não cheguei nesse ponto, diminuí o consumo. Pessoas que resistem a mudanças precisam ser educadas a pensar nas futuras gerações”, afirma Paula Castro, professora do ensino médio e Mestre em Filosofia pela PUC-SP.
Especialistas aconselham o auto-questionamento, ou seja, perguntar-se sobre o que se está comprando, de que forma e por que. Isso pode ajudar a redefinir o conceito de “prosperidade”. “O vetor informação é fundamental, apesar de não ser o único a resultar numa mudança drástica de atitude. É preciso haver repensamento de posturas individuais, engajamento de Estado e empresarial”, afirma Adriana Charoux, do Idec.
“Nunca parei para pensar nisso. Ninguém jamais me falou que deveríamos perguntar de onde vem a carne. Informações detalhadas sobre a origem deveriam vir na embalagem. Gostaria de comer carne sabendo sua procedência e sem me sentir culpada”, afirma Tutis Koller, funcionária pública. O critério preço é relevante, mas não deve ser o único. Comer carne sem saber sua origem pode representar riscos à saúde. “O boi que vive em regiões tropicais é uma enciclopédia de amebas, protozoários e bactérias”, explica Meirelles Filho, do Peabiru.
Além de refletir sobre o consumo de carne, a sociedade pode pressionar redes varejistas. Como parte de sua campanha, o Idec possibilita aos consumidores que exijam das redes Wal-Mart, Carrefour e Pão de Açúcar a origem da carne que compram. Para participar, clique aqui. “As pessoas também podem questionar as empresas pelos meios usuais como o SAC, cobrar via cartas formais e informais. “Constrangimento ético todos podem causar”, explica Adriana Charoux.
Maurício Broinizi, coordenador da secretaria-executiva do Movimento Nossa São Paulo, uma das organizações responsáveis pelo evento Conexões Sustentáveis, reforça que redes varejistas são fundamentais no processo que envolve a produção de carne na floresta amazônica. “Supermercados devem oferecer informações de qualidade às pessoas”. João complementa: “quem resolve esse problema é apenas o consumidor. A ameaça de destruição da Amazônia é uma ameaça real e muito próxima, com nome e sobrenome: pecuária bovina”.
* Karina Miotto é jornalista, mora em Manaus e é autora do blog Eco-Repórter-Eco.
Atalhos
Conexões Sustentáveis SP-Amazônia: Quem se Beneficia com a Destruição da Amazônia
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