Má notícia. A lista de espécies extintas no Brasil cresce com a inclusão de um animal no topo da cadeia alimentar, o tubarão-das-galápagos (Carcharhinus galapagensis). Vários relatos históricos apontam que grandes populações da espécie, com habitat junto a recifes oceânicos, existiam no arquipélago de São Pedro e São Paulo. Esse animal, no entanto, nunca mais foi avistado nesta formação rochosa, distante 986 quilômetros do continente. A constatação foi feita pelo trabalho Extinction of a shark population in the Archipelago of Saint Paul’s Rocks (equatorial Atlantic) inferred from the historical record (em português “Extinção de uma população de tubarões nos recifes do arquipélago de São Paulo, inferida pelos registros históricos”) assinado pelos cientistas Osmar Luiz Júnior, do departamento de Zoologia da Universidade Estadual de Campinas, e Alasdair J. Edwards, da School of Biology da Newcastle University.
O artigo foi publicado pela Biological Conservation, uma das mais importantes publicações da área. A pesquisa da dupla de cientistas utiliza um levantamento de registros feitos nos séculos 18, 19 e 20 e os compara com dados recentes, produzidos depois de dez anos de ocupação continuada e observações frequentes na estação científica do arquipélago de São Pedro e São Paulo. Entre os registros históricos, estão citados Charles Darwin, que passou por lá com seu HMS Beagle, em 1832, e outros visitantes, como a expedição da Universidade de Cambridge, em 1979. Osmar Luiz conta que a impressão é de que tubarões ocorriam no entorno das formações de São Pedro e São Paulo em quantidades extraordinárias. “Segundo relatos de viajantes experientes e acostumados a vida no mar”, ressalta.
O tubarão-das-galápagos é uma espécie comum em águas tropicais e temperadas, concentra-se em ilhas oceânicas e geralmente rasas, portanto típico de plataformas insulares. No Brasil, há registros da espécie apenas em São Pedro e São Paulo. “Uma ou duas vezes em Fernando de Noronha”, detalha Osmar Luiz, e em nenhum outro apontamento. O animal pode alcançar 3,7 metros de comprimento e inicia a vida adulta quando atinge 170 a 236 cm (macho) e 235cm (fêmea). Há carência de informação sobre o estado de conservação da espécie no mundo.
O motivo para a extinção dessa espécie em águas brasileiras é um só: a pesca comercial próxima demais a essa área de proteção ambiental (APA) que, pelo rigor da lei, deveria ser controlada, sustentável e realizada com plano de manejo. Na visão do próprio chefe do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, Ricardo Araújo, o plano de manejo não especifica muita coisa para o arquipélago de São Pedro e São Paulo. “Isso é uma pena”, lamenta.
Osmar Luiz alerta que a extinção de predadores, dependendo do lugar, tem consequências diferentes. “Nos EUA, a extinção dos grandes tubarões levou a uma superpopulação de raias e redução drástica no número de vieiras – o que levou à falência a indústria de pesca local”, exemplifica. O fenômeno chama-se cascata trófica (não é um trocadilho irônico, embora seja tentador fazê-lo) e, às vezes, nem precisa da extinção de uma espécie, apenas a redução drástica da sua população pode desequilibrar o seu ecossistema.
O trabalho aponta a pesca no arquipélago de São Pedro e São Paulo feita por espinhéis como a causa da extinção dessa espécie de tubarão. O espinhel é um cabo com centenas de metros que desce a grandes profundidades com vários anzóis presos. A pesca por espinhel é indicada para espécies que vivem em alto mar e a grandes profundidades. Os tubarões acabam capturados por engano, pois o alvo da prática são peixes com valor comercial maior.
O anúncio da extinção da espécie em águas brasileiras é visto com pessimismo até mesmo por quem está no Pacífico Leste, como o diretor regional de conservação marinha Scott Henderson, da Conservation International. Ele segue o mesmo raciocínio de Osmar Luiz: natural regulador do tamanho e composição das comunidades biológicas, a perda de um predador no topo da cadeia alimentar fatalmente tem consequências. Henderson diz que a remoção de um tubarão vai levar o predador de médio porte a se alimentar de um grande número de pequenos peixes de todos os tipos. “No final, o ecossistema se torna desequilibrado, dominado pelo predador de tamanho médio que se alimenta de tudo que se move”, explica o diretor da CI, que conhece a região. “No arquipélago de São Pedro e São Paulo, já há evidências de que as moreias estão extraordinariamente abundantes”.
Polêmica
A pesquisa de Osmar Luiz e Alasdair Edwards tem críticos. Um deles é Fábio Hazin, diretor de Oceanografia e Aquicultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), profundo conhecedor da pesca por espinhel e pesquisador entre os mais ativos na estação científica do arquipélago de São Pedro e São Paulo. Ele é um estudioso de tubarões e presidente da Comissão Internacional para a Conservação do Atum do Atlântico (ICCAT). Hazin não concorda com a conclusão de extinção do tubarão-das-galápagos, pois analisou três exemplares (duas fêmeas e um macho) capturados por pescadores no entorno do arquipélago de São Pedro e São Paulo e depositou suas maxilas no Museu Oceanográfico Universidade do Vale do Itajaí (Univali), com tudo registrado em artigo científico. Ele faz distinções entre as formas de pesca por espinhel. “Em toda pesca por espinhel, defendemos o uso do anzol circular para aumentar o índice de sobrevivência dos tubarões capturados”. E também é enfático ao discordar da pesca comercial no arquipélago: “Sou contra, sim, qualquer atividade de pesca de espécies demersais no entorno do arquipélago, que não seja para fins exclusivos de pesquisa”.
Natalia Alves Bezerra, pesquisadora do laboratório de ecologia marinha da UFRPE, já passou quatro temporadas na estação científica do arquipélago e também não acredita nesse resultado. Segundo ela, o tubarão-das-galápagos não está extinto. Vai além e levanta a hipótese de que a espécie pode não fazer parte da biota permanente. “Em 2009, durante o monitoramento em expedições da pesca, espécimes do tubarão de galápagos foram observados e posteriormente identificados por pesquisadores da UFRPE”. Os registros dos tubarões, completa Natalia, ainda não estão disponíveis.
Na região, Natalia defende que há espécies de tubarões com ocorrências esporádicas. Muitas são sazonais, a exemplo do magnífico tubarão-baleia (Rhincodon typu). “Outras espécies utilizam as imediações do arquipélago de São Pedro e São Paulo durante praticamente todo o ano, tais como o lombo preto (Carcharhinus falciformis), martelo (Sphyrna lewini), azul (Prionace glauca) e mako (Isurus oxyrinchus),”.
Osmar Luiz contra-argumenta que o tubarão-das-galápagos raramente migra, pois é ligado a área de recifes em que vive. Mas considera animadores os dados do estudo de Hazin. Como a pesquisa capturou exemplares do Galápagos na área, “podemos afirmar”, diz ele, “que esta espécie poderá reconstituir sua população no arquipélago de São Pedro e São Paulo, se a pesca por espinhel for proibida”.
Desequilíbrio
Todos concordam, no entanto, que os tubarões-das-galápagos costumavam ser avistados em quantidade na região. Osmar Luiz e Alasdair Edwards levantaram 1998 como o último ano em que os tubarões foram vistos. A data é importante porque coincide com o ano da fundação da estação científica no arquipélago de São Pedro e São Paulo e mostra que a extinção ocorreu em um período sem regulamentação da APA e praticamente nenhuma fiscalização. “Hoje os pescadores preferem trabalhar mais afastados”, comenta Osmar Luiz, que, por dois períodos, foi hóspede da estação científica.
Nem todos os pesquisadores que já estiveram na estação científica consideram segura a distância regulamentar dos navios de pesca em relação aos recifes. O professor Ronaldo Francini-Filho, do departamento de zoologia Universidade Federal da Paraíba (UFPB) aponta a pesca de atum e a retirada de nadadeiras de tubarões, o chamado finning, como responsáveis pelo desequilíbrio desse ambiente. “Essas práticas são comuns no arquipélago”, conta. Isso é grave, pois o finning é proibido no Brasil. Na região, a espécie que mais sofre com ela é o tubarão-azul.
O professor Carlos Eduardo Ferreira, do departamento de biologia marinha da Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra do debate que existe entre os estudiosos da engenharia de pesca e os biólogos. “O ideal seria a união entre as duas perspectivas, mas o pessoal da pesca se preocupa com a produção pesqueira enquanto os biólogos se concentram nas características ecológicas e nos métodos de conservação”. Carlos Eduardo vai além e cita a contradição que existe nas ilhas protegidas pela Marinha do Brasil, destinadas à pesquisa científica: o arquipélago de São Pedro e São Paulo e a Ilha de Trindade. Quem presta o serviço de fornecimento de mantimentos a esses locais são, exatamente, as embarcações pesqueiras.
O biólogo João Luiz Gasparini, pesquisador associado ao departamento de oceanografia e ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) tem uma opinião firme sobre o assunto. Acredita que tanto o CNPq quanto a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm) deveriam acabar com a contratação de barcos de pesca para fazer o translado e dar apoio às pesquisas no arquipélago ou em qualquer outra ilha oceânica brasileira. “É um contrassenso. Guardando as devidas proporções, é como se a National Geographic Society contratasse uma empresa especializada em safáris de caça ao chimpanzé para levar a Jane Goodall para realizar as suas pesquisas na Tanzânia”, compara. Ele afirma ter presenciado pesca de tubarões e até dóceis raias-jamantas pelas traineiras que levam os pesquisadores. “É inaceitável”.
O diretor do Instituto Aqualung, Marcelo Szpilman, trabalha em defesa dos tubarões e critica a sobrepesca, em especial, a pesca predatória do peixe (que inclui a prática do finning). “Sem esses guardiões, teremos um ambiente doente e frágil, por causa do desequilíbrio que sua ausência vai gerar”.
Metodologia
O trabalho de Osmar Luiz e Alasdair Edwards tem vários aspectos que estimulam o debate. Osmar Luiz utiliza um método inédito no Brasil, que é a busca por relatos de navegadores do passado, em livros antigos, para confirmar a existência em abundância do tubarão-das-galápagos no arquipélago de São Pedro e São Paulo, uma espécie nunca vista nos dez anos de funcionamento da estação científica. Os pesquisadores fizeram um minucioso trabalho de levantamento nos registros históricos. “Temos relatos de expedições geológicas na década de 60, relatos de navegadores nos anos 20, 30, 40… Até o século retrasado. O relato mais antigo de tubarões é de 1799”, conta Osmar Luiz.
O recurso é elogiado por outros acadêmicos. “Os dados históricos são de qualidade acima de qualquer suspeita”, elogia João Gasparini. “São observações naturalísticas maravilhosas, embasadas em documentos de navegadores lendários”, completa. Ronaldo Francini-Filho acha que o trabalho ajudou a chamada ecologia histórica a conquistar espaço dentro dos estudos acadêmicos sobre a extinção de espécies.
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