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O braço europeu na Conservação

Experiência de parque transnacional na Península Ibérica mostra que os homens estão aprendendo que a natureza ignora fronteiras e contribui para fomentar a cooperação entre países.

20 de outubro de 2008 · 15 anos atrás
Foto: Pedro da Cunha e Menezes
Foto: Pedro da Cunha e Menezes

Assim, nada mais natural do que formalizar entre os homens o que a natureza sempre consagrou: a união entre o Parque Nacional da Peneda-Gerês e o Parque Natural da Baixa Limia-Serra do Xúres. Em 1997, os dois governos peninsulares sentaram-se e assinaram o protocolo que deu origem ao Parque Transfronteiriço. Na linguagem dos burocratas o acordo destina-se a “fomentar o estabelecimento de normas e medidas similares ou complementares para a defesa, preservação e conservação; o manejo comum do ecossistema e a integração das malhas de trilhas; o Intercâmbio de técnicos, moradores e escolares e a realização de competições esportivas transfronteiriças; a promoção conjunta do uso público e do turismo ecológico com oferta comum de infra-estruturas existentes em ambos os parques, apresentando ao visitante uma visão global do espaço protegido”.

Nem tudo que os políticos anunciaram com pompa e circunstância saiu do papel. Mas, no frigir dos ovos, a realidade hoje é muito mais o resultado de uma cooperação séria e consistente do que dois manejos autônomos e descoordenados. Não há fronteiras ou barreiras de qualquer espécie entre as duas áreas protegidas. A movimentação de animais e visitantes é completamente livre. Funcionários de ambos os parques reúnem-se periodicamente e planejam conjuntamente ações de prevenção e combate a incêndios florestais, fiscalização e manejo de flora e fauna. Mais de 20 turmas escolares de um país visitam o lado estrangeiro do Parque a cada ano.

Também no campo do planejamento da malha de percursos pedestres houve avanços. Ambos os lados do Parque Transfronteiriço são cortados por uma importante estrada romana, que nos tempos dos césares ligava Braga a Astorga (em latim: Bracara Augusta e Asturica Augusta). Há cerca de 2.000 anos a região inteira era cortada por rodovias do Império Romano, mas o tempo e o progresso fizeram com que seus traçados desaparecessem. A parte que corta o Gerês-Xurés, contudo, foi pesquisada por arqueólogos que encontraram diversos marcos de milhagem, longos trechos calçados, vestígios de 39 pontes e de obras de contenção de encostas. Com efeito a estrada, ou Geira Romana, foi projetada por arquitetos e engenheiros da antigüidade e já naquela época avançava em perfeitos zigues-zagues pelas encostas, cruzava os cursos d´água nos locais mais adequados e tinha sete metros de largura, permitindo o trânsito de carroças e parelhas de bois. Seus leitos eram convexos de modo a não deixar que a água se acumulasse ou fluísse sobre o caminho e havia várias valas de drenagem em pontos de acumulação de água.

Após a criação do Parque Transfronteiriço, portugueses e galegos arregaçaram as mangas e dedicaram-se a recuperar o que resta da estrada. Consertaram-se alguns trechos, sinalizaram-se outros e reconstruiram-se mais uns poucos. Cerca de 16 km dos 30 identificados já estão prontos e à disposição dos caminhantes. Ao fim e ao cabo será possível percorrer todo o Gerês-Xurés pela Geira Romana e ainda visitar no passeio um museu que será criado com os achados arqueológicos da estrada. Esse monumental esforço de manutenção é um tributo à história comum e um retorno a preocupações que já existiam no século III, durante os governos de Máximo e Maximiano.

Em um dos marcos de milhagem que podem ser encontrados intactos na Geira Romana ainda se lê “O imperador César Gaio Júlio Vero Maximino, Pio, Feliz, Augusto, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, pontífice máximo, no seu quinto poder tribunício, sete vezes imperador, propertor, cônsul, procônsul e Gaio Júlio o Máximo, mui nobre César, Germânico Máximo, Dácico Máximo, Sarmático Máximo, Príncipe da Juventude, filho do nosso senhor imperador Gaio Júlio Vero Maximino, Pio Feliz, Augusto, restauraram as estradas e as pontes arruinadas pelo tempo, sob o controlo de Quinto Décio Valeriano, legado de Augusto, propretor. Desde Bracara Augusta”. Como se vê, não sem razão, a estrada está na lista dos novos monumentos a serem considerados para classificação como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.

Mas não é só de restaurar suas ruínas que o Parque vive. Com efeito o lado português é tão bem manejado que a Peneda-Gerês foi recentemente admitida como a 11ª unidade de conservação do restrito grupo Pan Parks. A fundação PAN Parks objetiva auditar o manejo dos Parques Europeus e classificá-los de acordo com seu grau de preservação, criando assim uma rede com as melhores áreas naturais da Europa. As áreas preservadas candidatas à certificação PAN Parks são sujeitas a um rigoroso processo de auditoria independente, onde são considerados vários critérios, tais como a integridade do meio ambiente e dos valores naturais, o manejo da natureza e da biodiversidade, a gestão dos visitantes e o desenvolvimento do turismo sustentável. Segundo documentos da fundação, entre os requisitos de adesão das áreas protegidas à certificação PAN Parks destacam-se: “possuir uma extensa área, não inferior a 20.000 hectares; integrar uma wilderness zone (zona sem intervenção humana) com uma área mínima de 10.000 hectares; desenvolver uma política de gestão da visitação (plano de gestão de visitantes); e programar, implementar e monitorar uma estratégia de desenvolvimento do turismo sustentável, de forma participativa”. Gerês foi aprovado em todos os itens e agora pretende incluir o outro lado da fronteira no próximo galardão ao que se candidata, que é o de Reserva da Biosfera.

Esperemos que seja bem sucedido também nesse pleito. O resultado da iniciativa, ainda que careça de pequenos detalhes óbvios como uma página comum na Internet, um uniforme padronizado para os funcionários de ambos os lados do Parque, folhetos turísticos feitos em conjunto e outras coisas menores, tem sido inegavelmente positivo para o ecossistema e seus visitantes. Mais do que isso. O Parque Transfronteiriço é um exemplo que inspira muitas iniciativas similares. A semente plantada na serra do Gerês-Xurés já gerou frutos. Cooperação semelhante está sendo feita com seus vizinhos espanhóis pelos Parques Naturais Portugueses das Serras de Montesinho, Malcata. São Mamede e pelos Parques Naturais do Douro e do Tejo, os dois últimos rebatizados para Parques Naturais Internacionais. Esse processo de gestão comum e concertada assenta-se sobre espaços cuja história milenar foi escrita com o sangue de várias guerras cruentas.

Os parques de  hoje localizam-se precisamente nas montanhas escarpadas e nas margens dos rios profundos que marcaram as fronteiras de antanho, dividindo povos, línguas e soberanias; demarcando regiões e submissões a diferentes poderes em capitais antagônicas. Todos os maiores conflitos ibéricos começaram nessa linha de fronteira, com invasões mútuas que criaram ódios arraigados e tornaram distantes entre si populações cultural e geograficamente próximas. Nesse sentido, a gestão conjunta de Áreas Protegidas pelo princípio do ecossistema aproxima os diferentes e cria uma zona de transição entre as fronteiras nacionais, dando um caráter de povo híbrido às gentes que habitam cada lado da fronteira nessas regiões, amalgamando dessa forma países vizinhos. Quanto mais concertado for o manejo, maior o sentimento de unidade entre povos que a história esforçou-se em separar.

Nesse passo, logo os Parques Transfronteiriços serão os algodões que evitarão que eventuais choques entre os cristais que separam ocasionem o espatifamento de uma, de outra ou de ambas as partes. Não é sem razão que a União Mundial para Conservação da Natureza (UICN) tem chamado as Unidades de Conservação Fronteiriças de “Parques da Paz”.

Ainda na gestão Marina Silva o Ministério do Meio Ambiente colocou o estabelecimento de mecanismos de cooperação em Áreas Protegidas na fronteira como uma de suas prioridades. Carlos Minc, mal entrou, já assinou um acordo com propostas de manejo concertadas com autoridades ambientais francesas da Guiana. Muito embora não tenhamos um historial recente de guerras nas nossas fronteiras, não há dúvidas que esse é um bom caminho que pode ser um motor de mudança na postura secular de povos vizinhos que se acostumaram a crescer de costas uns para os outros. No contexto da América do Sul, o estabelecimento de Parques Transfronteiriços pode ajudar-nos a perceber quão iguais somos e assim fomentar uma maior cooperação e integração, cujos resultados serão fundamentais para um crescimento sustentado e comum rumo ao progresso do continente.

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