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O Acórdão do caso da TI Raposa Serra do Sol

Ementa do célebre julgamento reafirma antiga jurisprudência de que  ocupação indígena não deve ser confundida com a lembrança de um passado remoto  que, certamente, tem o condão de definir “regiões mitológicas.” 

7 de outubro de 2009 · 15 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O Diário Oficial da União de 25 de setembro  de 2009 publicou a ementa da Petição n° 3.38-4 que cuida do célebre caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol que é um dos mais importantes precedentes judiciais sobre a candente questão da demarcação das Terras Indígenas, servindo de marco institucional para o adequado balanço entre os diferentes direitos que se “chocam” sempre que a demarcação de Terras Indígenas é posta ante a Administração e o próprio Poder Judiciário. Pretendo neste artigo tratar de alguns potos suscitados no  memorável decisum, o que passo a fazer.

Inicialmente, veja-se a cabeça da ementa: “AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA EM PARTE” 

O primeiro ponto que merece destaque na ementa é que o STF reconheceu que o estatuto do índio (Lei n° 6.001/73 permanece vigente e, portanto, foi recebido pela Constituição de 1988. Desde o século passado tramita no Congresso Nacional o PL 2057/91 que trata do Estatuto das Sociedades Indígenas cuja premissa básica é a de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal criaram um arcabouço jurídico que teria revogado o antigo Estatuto do Índio, vez que teria dotado os índios de um grau de autonomia incompatível com o regime de tutela explicitado pela Lei 6001/73, a qual já constava do Código Civil de 1916. O Código Civil de 2002, ao tratar dos índios1 remeteu a matéria para legislação especial que, à falta de outra, permanece sendo o  Estatuto do Índio, o qual determina que os índios poderão requerer a sua emancipação do regime de tutela, tanto individualmente como coletivamente2.

É importante ressaltar que o STF manteve a concepção de que os índios necessariamente passam por um processo de “aculturação” e que durante tal processo não deixariam de merecer proteção especial por parte do Estado Brasileiro. “O substantivo “índios” é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva.” Assim, aparentemente, os propósitos integracionistas do Estatuto do Índio foram preservados e tidos como compatíveis com o Texto Constitucional vigente que era, até então, considerado “autonomista”.  A questão que se coloca para o futuro é o estabelecimento da necessária ponderação de interesses entre os reclamos de autonomia das diferentes comunidades indígenas e o expresso reconhecimento por parte do STF de que o conceito de comunidade indígena é conceito étnico-cultural e não conceito político.

A descaracterização da natureza “política” das sociedades indígenas  e afirmação do conceito étnico-cultural fica clara no trecho em que o tribunal enfrenta o ponto fulcral da discussão que é o da natureza jurídico-política das Terras Indígenas, dando-lhes o tratamento de “parte essencial do território brasileiro”, como já se podia inferir de uma leitura isenta do artigo 20 da Constituição Federal que arrola as Terras Indígenas entre os bens da União:  “As “terras indígenas” versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte de um território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou “independência nacional” (inciso I do art. 1º da CF). 5.2. Todas as “terras indígenas” são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles “tradicionalmente ocupadas”. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial.” As Terras Indígenas, portanto, não se constituem em um espaço territorial imune à jurisdição brasileira.  Aliás, o Tribunal reafirmou a liderança, sem  exclusividade, da União em todos os assuntos que digam respeito às Terras Indígenas e aos direitos das comunidades: “A vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as pessoas federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido, que é de centralidade da União. Modelo de ocupação que tanto preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não-índios. A atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer, contudo, em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. Papel de centralidade institucional desempenhado pela União, que não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do Ministério Público (inciso V do art. 129 e art. 232, ambos da CF).” É interessante que o realce dado ao papel do Ministério Público Federal nas questões indígenas, certamente, esvazia a idéia de autonomia, pois por mais identificado que o MPF seja com as agruras e dificuldades dos indígenas, será sempre um terceiro vinculado ao estado nacional.  Assim, o reconhecimento das práticas e costumes indígenas, de seu “direito” somente ocorre porque o direito nacional incorporou tais práticas como aspectos peculiares de uma ordem jurídica mais abrangente, desde que compatíveis com a legislação maior. Não há, portanto, um pluralismo jurídico capaz de atribuir às regras indígenas força vinculante apesar do direito nacional. O “microssistema” só é admitido enquanto parte integrante da ordem jurídica nacional.

Afastou o STF, igualmente, qualquer possibilidade de que se dê aos conceitos de Terras Indígenas o mesmo status que a expressão “território” desfruta no âmbito do direito internacional, o mesmo se plicando aos conceitos de nação ou povo indígena que, conforme decidido pelo tribunal são meramente expressões retóricas e não expressam o mesmo conteúdo que lhes atribuíra, dentre outros Bodin: “Somente o “território” enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou autônoma. O substantivo “terras” é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em “terras indígenas”. A traduzir que os “grupos”, “organizações”, “populações” ou “comunidades” indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como “Nação”, “País”, “Pátria”, “território nacional” ou “povo” independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de “nacionalidade” e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro.” 

”Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal.”

Reconheceu a Corte Constitucional que, em função de situações histórica e concretamente definidas, as comunidades indígenas se encontram em processo de desfavorecimento no interior da comunidade nacional e, por isso, credoras de ações estatais capazes de balancear a situação de “menos valia”, com vistas a buscar uma recomposição de equilíbrio em relação aos demais grupos étnicos formadores da nacionalidade. Não há como se afastar do que fora decidido pelo STF um relevante aspecto integracionista, ainda que destituído da carga autoritária que se encontra no Estatuto do Índio.  “Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.”

No que se refere propriamente à chamada “ocupação tradicional”, o Supremo Tribunal Federal reafirmou antiga jurisprudência no sentido de que as terras Indígenas, necessariamente, devem estar sob posse indígena, não se confundindo tal ocupação com a lembrança de um passado remoto  que, certamente, tem o condão de definir “regiões mitológicas” que formam uma memória coletiva que, em processo de afirmação da identidade indígena, muitas vezes não corresponde à uma situação fática e, como sabemos, a posse é fato que gera direito. É a base material que fornece elementos para que o direito possa agir em defesa do possuidor. Justifica-se a orientação adotada pelo Pretório Excelso, pois as reminiscências históricas não são fontes geradoras de direito, servindo quando muito de referências a serem confirmadas pelos fatos concretos e constatáveis. É verdade que o STF, definiu um marco temporal para a comprovação da posse indígena, definindo-o como o dia 05 de outubro de 1988. As políticas afirmativas e o apoio que o Governo Federal tem dado às com unidades indígenas tem gerado um processo bastante interessante que é conhecido como etnogênese, ou seja, diversas comunidades tem se assumido como indígenas, chegando mesmo a se autoatribuirem determinadas denominações que, nem sempre, correspondem a um processo de continuidade histórica de uma comunidade. Inadvertidamente, a simples autodenominação como comunidade indígena tem sido interpretada como único fator capaz de atribuir “indigenidade” a um grupo social. “O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. (…) O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol,cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”. 

“O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado “princípio da proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. 12. DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º do art. 231 da CF).”

“O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em “bolsões”, “ilhas”, “blocos” ou “clusters”, a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio). 14. A CONCILIAÇÃO ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas. 15. A RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA ENTRE TERRAS INDÍGENAS E MEIO AMBIENTE. Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de “conservação” e “preservação” ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental. 16. A DEMARCAÇÃO NECESSARIAMENTE ENDÓGENA OU INTRAÉTNICA. Cada etnia autóctone tem para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar forma de organização social. Daí o modelo contínuo de demarcação, que é monoétnico, excluindo-se os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra. Modelo intraétnico que subsiste mesmo nos casos de etnias lindeiras, salvo se as prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines venham a gerar, como no caso da Raposa Serra do Sol, uma condivisão empírica de espaços que impossibilite uma precisa fixação de fronteiras interétnicas. Sendo assim, se essa mais entranhada aproximação física ocorrer no plano dos fatos, como efetivamente se deu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não há como falar de demarcação intraétnica, menos ainda de espaços intervalados para legítima ocupação por não-índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios. 17. COMPATIBILIDADE ENTRE FAIXA DE FRONTEIRA E TERRAS INDÍGENAS. Há compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos, esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País (eles, os índios, que em toda nossa história contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém. 18. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS QUE SE COMPLEMENTAM. Voto do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas, por iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão.” 

O Acórdão é, certamente, fundamental para que, doravante, a demarcação de Terras Indígenas e os limites jurídicos que dela advém fiquem mais claros, gerando maior segurança tanto para os indígenas como para os não indígenas. Aguardemos os próximos movimentos do STF em questões semelhantes para sabermos se, efetivamente, a decisão ora examinada se constituirá ou não em um divisor de águas na jurisprudência da Corte.

1 – Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

2 – Art.7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei. §1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e as normas da tutela do direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória. §2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas. §8º São nulos os atos praticados entre índios não integrados e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente. Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efetivos. Art.9º Qualquer índio poderá requerer ao Juízo competente a sua liberação do regime tutelar previsto nesta Lei, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os requisitos seguintes: I – idade mínima de 21 anos; II – conhecimento da língua portuguesa; III – habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional; IV – razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. Parágrafo único. O juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrita a sentença concessiva no registro civil. Art.10º Satisfeitos os requisitos do artigo anterior, e a pedido escrito do interessado, o órgão de assistência poderá reconhecer ao índio, mediante declaração formal, a condição de integrado, cessando toda restrição á capacidade, desde que, homologado juridicamente o ato, seja inscrito no registro civil. Art.11º Mediante decreto do Presidente da República, poderá ser declarada a emancipação da comunidade indígena e de seus membros, quando ao regime tutelar estabelecido em lei; desde que requerida pela maioria dos membros do grupo e comprovada, em inquérito realizado pelo órgão federal competente, a sua plena integração na comunhão nacional. Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste artigo, exigir-se-à o preenchimento, pelos requerentes, dos requisitos estabelecidos no artigo 9º.

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