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Quem são os réus no drama catarinense?

“Utilidade pública” e “interesse social” vêm sendo usados por décadas para degradar áreas de preservação permanente. Maior utilidade seria evitar a morte de pessoas.

2 de dezembro de 2008 · 15 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Ouvi, nesses dias de tragédias ditas naturais, uma frase bem sábia do jornalista Alexandre Garcia no que concerne às perdas de vidas humanas em Santa Catarina e ao tradicional descaso com a conservação da natureza: “O clima não pode ser réu”. É isso mesmo. Enquanto as autoridades, ao longo das últimas décadas, têm aceitado alterações importantes do Código Florestal brasileiro, facultando cada vez mais desmatamentos e ocupações de áreas de risco, surgem agora “os salvadores” da pátria que querem gastar milhões em obras de contenção e de prevenção. Rogo aos céus que as comissões a serem formadas para a avaliação das conseqüências das excessivas chuvas tenham cientistas em conservação da natureza, que possam medir como teria sido o panorama se as áreas de preservação permanente pelo só efeito da Lei- Código Florestal, Lei 4771 de 1.965 tivesse sido cumprida no país, como estava previsto em sua forma original

Há mais de um ano publiquei uma coluna aqui em O Eco, com o título Morte anunciada, onde eu já dizia que as mortes por inundação e desbarrancamentos aumentariam muito, principalmente graças à flexibilização das Áreas de Preservação Permanentes (APPs), autorizada pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) em resolução do dia 22 de fevereiro de 2006. E, verdade também seja dita, que há décadas não existe proteção efetiva dessas APPs e nem tampouco das reservas legais previstas no Código Florestal. Ao contrário, o que vem acontecendo é que por motivos de “utilidade pública” ou “interesse social” as Áreas de Preservação Permanente exigidas por Lei podem ser profundamente alteradas.

Muita alteração e devastação cabe nesses dois itens – utilidade pública e interesse social -, principalmente em áreas urbanas. Só não percebem que a maior utilidade pública seria evitar-se a morte de seres humanos e de outros seres vivos, ou pelo menos que fossem em menores números.  Muita coisa já foi alterada no Código Florestal original e constantemente há novos projetos de Lei para se comer ainda mais do que deveria ser protegido para garantir, entre outros motivos, a qualidade de vida do ser humano. Ou estou errada? Até mesmo no estado de Santa Catarina, que está sofrendo o que hoje acontece, há a proposta de um Código Ambiental no nível estadual que pretende diminuir ainda mais as áreas de preservação permanente, aquelas mesmas que podem fornecer os serviços ambientais fundamentais para uma boa qualidade de vida para seus cidadãos.

Este assunto já está registrado aqui mesmo neste meio de comunicação, em reportagem de Aldem Bourscheit e artigo de Miriam Prochnow, ora no ar. Mesmo com toda a tragédia que hoje assistimos consternados, o governador do estado tem a coragem de dizer nos meios de comunicação que tudo foi conseqüência das chuvas. É senhor governador, o clima não pode sentar no banco dos réus. Mas garanto que muitas autoridades do estado deveriam sim sentar no banco dos réus, principalmente aquelas que autorizaram a ocupação irregular e ilegal de mangues, restingas e dunas e de encostas com declividade acentuada e nos topos de morros, bem como, nas nascentes, margens de rios, lagos, lagoas e de outros corpos d´água.

 Na minha coluna Morte Anunciada, eu dizia sobre o Código Florestal de 1965: É impressionante notar que já naquela data, com uma realidade bem menos angustiante, os conservacionistas que prepararam o Código Florestal, se preocuparam seriamente com os serviços ambientais advindos da conservação da natureza. No caso das APPs e também das reservas legais (que variavam de 20% na região extra-amazônica a 50% na Amazônia) é particularmente surpreendente, mesmo que contemplado em uma época em que ainda havia muito de Mata Atlântica, de Cerrado e quase tudo da Amazônia, que já se preocupassem em garantir, pelo só efeito da Lei, áreas protegidas necessárias ao bem estar da população, em forma de APPs. Infelizmente, por décadas, as autoridades negligenciaram o cumprimento da lei e, assim, as reservas legais não foram respeitadas. Pouco das APPs, principalmente em regiões muito desenvolvidas, restaram. A legislação subseqüente sobre o assunto mudou drasticamente com a resolução do Conama de 2006.

Se todas as APPs previstas no Código Florestal de 1965 tivessem sido realmente protegidas, bem como as reservas legais, teríamos tido infinitamente menos erosão dos solos, em especial das do tipo violento que ocasionam a maior parte das perdas de vidas humanas e, em conseqüência, teríamos menos assoreamento de rios e lagos e, por isso, também, menos inundações e desbarrancamentos. Mas essa é apenas uma parte dos benefícios que os brasileiros de hoje perderam por falta de respeito às regras. Ainda se deve falar da redução do potencial pesqueiro de rios e mares em conseqüência das seqüelas da erosão, da perda da diversidade biológica das matas ciliares, que sempre foi particularmente rica, das custosas dificuldades de navegação provocadas pelos sedimentos nos rios etc.

O costume nacional de fazer legislação para “inglês ver”, ou seja, esquecê-la tão logo aprovada, ficou muito caro para a sociedade, em termos de tragédias humanas e de milhões de reais do erário público para enfrentar destruições como as que ocorreram agora em Santa Catarina e que já estão ocorrendo no estado do Rio de Janeiro e, também, no Espírito Santo.

Parece muito difícil que a população e, pior ainda, as autoridades constituídas, percebam que, por maior que sejam as precipitações pluviométricas, se existisse cobertura vegetal as seqüelas seriam em muito minimizadas. As reservas legais, onde o corte raso é proibido, também teriam ajudado enormemente.

Tudo começa com a erosão, conseqüência do mau uso dos solos e/ou do desmatamento ou incêndios onde a lógica, a Ciência e a lei os proíbem. Corta-se a floresta por vários motivos: para agricultura, pecuária, infra-estrutura, mineração ou assentamentos urbanos. Tudo bem, nós precisamos dessas atividades. Mas por que se desmatar até as APPs, ou seja, as vegetações de topos de morros, onde existe muita declividade, as matas ciliares, as nascentes, dunas, restingas e mangues? Da erosão ou perda de solos vem de uma parte o empobrecimento da fertilidade da terra e, de outra, a sedimentação, ou seja, quando os vales de rios e demais corpos de água ficam entupidos com milhares de toneladas de terra que, desprotegida, desce para as regiões mais baixas. Com a elevação dos leitos dos rios, provocada pela sedimentação, surgem mais violentas as inundações comendo plantações, casas, pontes, estradas, animais e gente. Os solos encharcados cedem e provocam os desbarrancamentos que engolem rodovias, pontes, carros, casas e, outra vez, gente.

Por que, então, com tanta tragédia, com tanta evidência visível a olho nu, não se faz o óbvio, que é proteger-se as APPs? Bem, a resposta novamente é óbvia: no curtíssimo prazo é mais barato e, os políticos sempre preferem inaugurar um campo de futebol, inclusive em APP, ao invés de serem sérios e corajosos e promoverem a remoção das populações pobres (ou pelo contrário muito ricas) ilegalmente assentadas em zonas de APPs de alto risco.

O problema é que os políticos não querem enfrentar as decisões de deixar a cobertura vegetal protegida, ou seja, cumprir a legislação em vigor. Tampouco querem mexer com “os pobres” que vão ocupando os morros, cada vez em declividades mais elevadas, ou que ocupam mangues, restingas ou margens de rios, ou outros corpos de água. É só ver as favelas em qualquer cidade grande ou capital. Com os ricos não mexem, por outros motivos.

Neste momento, não quero ser injusta com alguns dirigentes que enfrentaram estes tipos de situações e, a despeito de toda impopularidade, destruíram casas e outras obras de infra-estrutura em áreas protegidas como o que, por exemplo, aconteceu em um Parque Estadual do Rio Grande do Sul. Em geral, por uma falsa pena, com os pobres, ou por falta de coragem, ou, ainda, por interesses eleitoreiros,  autoridades fecham os olhos para as ocupações irregulares, em visível desrespeito à legislação em vigor. Assim, quando estes mesmos pobres começam a perder suas casas e seus parcos bens, além de suas vidas, o réu tem de ser o clima. E assim é, pois, não há estudos e tampouco mensurações que possam colocar no banco dos réus aqueles que facilitaram as mortes por desbarrancamentos, inundações e doenças delas decorrentes.

Não vamos nem nos dar o gosto de ver os responsáveis pelos desmandos e suas tristes conseqüências nos bancos dos réus, pois, na verdade, nem conhecemos os nomes dos verdadeiros réus e nem existem provas documentadas contra os mesmos.

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