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Parque de papel embrulhado

A sentença que anulou a criação do Parque Nacional de Ilha Grande é exemplo de como os autos podem levar juízes longe da realidade nua e crua.

3 de maio de 2010 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

 Se todo brasileiro pudesse viver nos autos, na meritíssima companhia dos juízes, a sentença que anulou este mes o Parque Nacional de Ilha Grande seria uma aula de Direito. O juiz federal Nicolau Konkel Junior, provocado por ação civil pública da Colonia de Pescadores Z-13, caprichou na crítica à criação no país de unidades de conservação “no papel” e na lerdeza das autoridades ambientais, que deixa os desapropriados “na espera” da indenização “por longa data”.

Saber que alguém no judiciário nacional tem pressa é uma grande notícia. Ela se expressa com eloquência nos parágrafos conclusivos, uma rajada de verbos fortes e frases curtas: “Motivei”, “Condeno”, “Publique-se”. Se fosse no cinema, daria para ver o magistrado, dito isso, sair de cena, num esvoaçar de toga.

O problema é que, cá embaixo, as coisas nem sempre funcionam como nos autos, ou aquele psicopata de Luziânia não teria assassinado seis meninos no gozo de seus direitos à progressão da pena, por bom comportamento. Na história de Ilha Grande, as águas também são mais turvas do que parecem na sentença.

O rio Paraná banha ali uma fronteira tirada há tão pouco tempo do patrimônio público a machado, serra e fósforo, que a maioria dos títulos de propriedade na região tem origem mais ou menos artificial. Ao formar a barragem de Itaipu, o governo militar teve que mandar o Incra empapelar depressa os posseiros, para poder indenizá-los antes da remoção.

Na Ilha Grande, que na época estava reservada para virar mais uma hidrelérica, cerca de mil títulos foram doados pelo governo, como aviso prévio de expulsão. O projeto gorou. E os futuros desapropriados ficaram com seus papéis amarelando nas mãos. Eram em geral titulares de terras exíguas e inundáveis, num arquipélago fluvial de 200 ilhas. Só quando, dois anos atrás, o processo de Ilha Grande foi aberto é que, da noite para o dia, apareceram documentos oficiais aos montes. E sua cotação quintuplicou.

A própria colonia de pesca a que o juiz Konkel Junior deu toda razão arrasta, na Polícia Federal, um inquérito por emissão ou posse de títulos falsos. Pode-se debitar pelo menos em parte a essa corrida especulativa o entrave nas indenizações. E não foi só o parque que perdeu prazos. Mesmo nas mãos de proprietários legalizados na década 1980 havia títulos caducos, que não foram quitados a tempo junto ao Incra.

Ilha Grande, como a maioria das unidades de conservação no Brasil, é cercada de papéis por todos os lados, porque teve de se encaixar tardiamente em cinco séculos de privatização das terras públicas, costume tão entranhado na história do Brasil como o patoá forense. Nem por isso se pode dizer que Ilha Grande seja um parque “de papel”.

Com 78.500 hectares, um dos maiores parques nacionais fora da Amazônia, tem dois funcionários, contando com o chefe Romano Pulzatto Neto. Mas se mete em maratonas de fiscalização, sobretudo da pesca ilegal, como a operação que recentemente mobilizou 43 agentes e 15 veículos do gverno estadual e das administrações municipais.

Numa das lagoas internas, os fiscais encontraram um pescador. Perguntaram-lhe se não sabia que a pesca ali era proibida. E ele respondeu tranqüilamente que o parque “acabou”. Nisso a sentença do juiz Konkel Junior foi tiro e queda.

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