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Herança da máfia para o meio ambiente

Com séculos de vantagem sobre o Brasil quando se trata de administrar a desordem, os sicilianos estão descobrindo uma nova maneira de tirar proveito ambiental de sua máfia.

25 de junho de 2009 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Com séculos de vantagem sobre o Brasil quando se trata de administrar a desordem, os sicilianos estão descobrindo uma nova maneira de tirar proveito ambiental de sua máfia. As propriedades dos chefões, quando eles caem nas mãos do governo, viram parques públicos incorporados aos roteiros turísticos do Mediterrâneo.

Há pelo menos 450 hectares disponíveis para isso. E um desses butins imobiliários até já pegou como uma versão italiana do que, no Brasil, provavelmente se chamaria reserva extrativista. Fica nas terras que pertenceram a Salvatore Riina, a quem os jornais raramente se referem sem lhe incorporar ao nome o título de “sanguinário”.

Riina era proprietário rural em San Giuseppe Jato, um lugarejo de dez mil habitantes a 30 quilômetros de Palermo, até ser apanhado em 1993. Sua fazenda estão agora nas mãos da cooperativa Terra Libera, de  Don Ciotti, um jornalista de Turim que se converteu ao mesmo tempo em padre e militante da oposição ao crime organizado.

“Se for a Palermo”, prega um anúncio da fundação criada por Don Ciotti, “dê uma escapadinha a um endereço que abriu há pouco suas portas”. Lá se vende massa caseira, vinho, mel, azeite, legumes e conserva. “Mas não se trata dos produtos industrializados de costume”. É tudo biodinâmico e agroturístico, graças à herança da máfia.

Nessas horas, tem uma grande tradição mafiosa não deixa de ser vantagem. Desde o fim do ano passado, funciona numa das casas de Riina um restaurante natural com 90 lugares e quatro apartamentos, podendo hospedar até 16 pessoas, se depois do jantar o caminho de volta à cidade se tornar mais longo.

Perto dos Riina também se pode visitar o que resta da família Brusca, cujo patriarca Giovanni tinha a reputação firmada por nada menos de 100 homicídios, inclusive o juiz Giovanni Falcone, tirado de seu caminho no meio de uma investigação em 1992. Atualmente, o “terror de San Giovanni Jato” repousa na prisão perpétua.

Em seu lugar ficou seu irmão Enzo, que circula pacificamente pela cidade. E uma bela fazenda no alto de uma colina, rebatizada como Portinha da Giesta. Menos assustadora, impossível. Ela dá acesso a um centro hípico, que é outra gentileza da máfia siciliana.  E oferece aos hóspedes a garantia de se sentirem em casa.

É dirigida por um engenheiro agrônomo chamado Salvatore Gibiino, que afirma não ter pensado duas vezes na hora de assumir o legado de Brusca. Don Ciotti, o ideólogo da Terra Libera, considera um desperdício quase pecaminoso não usar os recursos tomados dos mafiosos pelo governo. Só no ano passado, foram na Itália 4 bilhões de euros.

Não que a mudança de gestão tenha saído de graça. A cooperativa perdeu 60 oliveiras num incêndio suspeito. Sofreu pequenos atentados. Mas conseguiu emplacar no mercado 450 mil garrafas por ano de seu vinho Cento Passi, com nome extraído de um filme de Marco Tullio Giordana sobre o assassinato do radialista Pepino Impastato.

Quem chegou até aqui deve estar se perguntando o que o Brasil tem a ver com essa história. E daí que dinheiro mal ganho para confiscar é o tipo da coisa que aqui não falta. O que lhe falta é programa para usá-lo direito, de preferência rendendo algum dividendo de sobra para a conservação da natureza. Brotaria reserva de graça no país inteiro.

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