Análises

Pedestres agradecem planejamento urbano

Em Barcelona, não são os carros que mandam, como em grandes centros tais quais Atenas, Los Angeles ou São Paulo. Tudo graças a projeto lançado há 150 anos.

Daniel Setti ·
13 de abril de 2009 · 15 anos atrás
O trem elétrico urbano Tram ligará o noroeste ao sudeste da cidade, sem emitir ruído ou produzir CO2. (Foto: Prefeitura de Barcelona)
O trem elétrico urbano Tram ligará o noroeste ao sudeste da cidade, sem emitir ruído ou produzir CO2. (Foto: Prefeitura de Barcelona)

Barcelona (Espanha) – O comercial televisivo era grego, mas sua compreensão transcendia diferenças idiomáticas ou alfabéticas: “Imagine”, de John Lennon, soava ao fundo, enquanto pessoas em cadeiras de rodas olhavam, consternadas, para calçadas sem vias rebaixadas. Como se estivessem “imaginando” um dia poder locomover-se com fluência em sua cidade.

Flagrei tal reivindicação de direitos de pessoas com incapacidades físicas em recente passagem por Atenas, o que serviu de endosso ao que já havia comprovado caminhando pelas ruas da capital grega. Embora continue no embalo da transformação urbana alimentada pelas Olimpíadas, que sediou em 2004, e seja turisticamente muito atraente, a cidade precisa avançar muito para ser um modelo de mobilidade ou de sustentabilidade. Em suas sempre congestionadas grandes avenidas centrais, as calçadas são estreitíssimas e freqüentemente não rebaixadas, o verde dos semáforos para pedestres dura escassos segundos, motoristas param na faixa de pedestres, ciclovias são uma raridade e a poluição é onipresente como a Acrópole.

Tal qual as maiores urbes brasileiras e centenas de outras espalhadas por outros continentes, incluindo o europeu, a Atenas moderna é fruto de um crescimento desordenado. Em seu caso, atingindo níveis alarmantes com a onda de imigração nos anos 1920 e a industrialização de três décadas depois. Hoje seus governantes quebram a cabeça em busca de alternativas de melhoria para seus cerca de 4 milhões de habitantes.

Barcelona e o plano Cerdà

Projeto urbano do arquiteto catalão Idelfons Cerdà (1815-1876) completa um século e meio em 2009. (Imagem: Divulgação/Barcelona)
Projeto urbano do arquiteto catalão Idelfons Cerdà (1815-1876) completa um século e meio em 2009. (Imagem: Divulgação/Barcelona)

Toda esta introdução para chegar ao foco desta coluna, Barcelona. A cidade espanhola escapa da maioria dos piores problemas enfrentados por Atenas, ou pode enfrentá-los com menos dificuldades, principalmente por ter boa parte de seu núcleo urbano planejado. Isso lhe permite permanecer crescendo, mas sem que as proporções entre sua população – 1,7 milhão na cidade e 3 milhões na área metropolitana – e seu espaço se descontrolem. Por esse e outros motivos muitos de seus moradores, principalmente os estrangeiros acostumados a metrópoles muito maiores, observam: “ela tem o tamanho perfeito, nem muito grande, nem muito pequeno”.

Isso se comprova em pouco tempo de vida barcelonesa. De fato, seus pouco mais de cem quilômetros quadrados de área parecem algo bem próximo ao ideal, ao menos para um pedestre, já que é possível cruzar a cidade de leste a oeste, entre os rios Besòs e Llobregat, ou de norte a sul, do morro Tibidado à praia, em não muitas horas de caminhada. Muito desse formato “compacto” se deve em ao Plano Cerdà, projeto do arquiteto catalão Idelfons Cerdà (1815-1876) que completa um século e meio em 2009, já batizado em Barcelona de “Any Cerdà” (do catalão, “Ano Cerdà”).

Seu plano criou o Eixample (“Extensão”), o grande complexo dividido em bairros com quarteirões de formato quadriculado idênticos, cortado por grandes avenidas diagonais, promovendo cada quadra a uma mini comunidade, com comércio próprio, e erguida em torno de um grande pátio no vão interno entre seus prédios. Parques e ramblas, os bulevares que praticamente todo bairro daqui tem, completavam o conceito desenvolvido por Cerdà.

Pois bem, o fato da Barcelona do século XXI ainda contar com cerca de 25% de sua área “eixamplada” e tal zona ser a mais visada e valorizada da cidade agiliza em muito certas ações da prefeitura, entre elas as voltadas para avanços urbanísticos e ambientais. O mesmo serve para outros bairros, já que uma das metas de Cerdà era exatamente o crescimento a partir do Eixample.

Mais espaço para pedestres

Além disso, sua essência planejada lhe ajuda nos momentos de concretização de melhorias no sentido da mobilidade dos pedestres, ciclistas e usuários de transporte público. Não fosse pela organização proposta pelo plano de 150 anos atrás, talvez não pudéssemos dizer hoje que em Barcelona não são os carros que mandam, como em grandes centros tais quais Atenas, Los Angeles, ou São Paulo. As amostras são cotidianas.

A prefeitura começou agora a ampliar para 4,60 metros as calçadas da movimentada Rua Balmes. Mais espaço para andar, menos pistas para carros, e não houve lobby de motoristas que empacasse a obra. Como a rua corta a cidade praticamente de norte a sul, da montanha à Praça Catalunha, e em linha reta, tudo fica mais fácil. Imaginei avenidas como a Santo Amaro ou a Rebouças (Sãp Paulo) passando por tal processo e as complicações que isso poderia causar por causa das plantas dos bairros adjacentes, além do choque que tal iniciativa causaria em muitos motoristas.

Na mesma linha seguem as restaurações de dezenas de passatges, as ruelas que existem em Barcelona desde o século XIX, e também de cerca de 40 illas, os tais pátios interiores previstos pelo projeto original de Cerdá. Uma das que foram recentemente “reinauguradas”, na rua Pau Claris, conta com um jardim e playground e leva o nome da pintora barcelonesa Laura Albéniz (1890-1944).

Em concordância com as boas novas para quem não se locomove de carro, a prefeitura de Barcelona promete também que até o final deste ano, todos os pontos de ônibus sejam adaptados para cadeiras de rodas. Serão removidos qualquer obstáculos que impeçam suas entradas nos ônibus e ampliados em 2,1 metros os espaços livres nas calçadas de cada ponto. O plano custa 4 milhões de euros e prevê a adaptação de 39 pontos por semana. Era o que faltava no sistema viário barcelonês, já que todos os 1080 ônibus de sua frota pública contam com espaço para cadeiras de rodas e rampas elétricas de acesso.

E, numa iniciativa municipal recente, pessoas com problemas de locomoção também estão sendo favorecidas, ironicamente, pelos motoristas: infratores condenados por pequenos delitos de trânsito são obrigados a prestar serviços como ajudar deficientes físicos em estações de metrô. Em dezembro de 2008, havia mais de 2.500 pessoas cumprindo penas semelhantes na Catalunha, comunidade autônoma (espécie de estado) da qual Barcelona é a capital.

Os eixos cívicos

Avenida Diagonal será modificada será modificada para se tornar um passeio atrativo e agradável. (Foto: Prefeitura de Barcelona)
Avenida Diagonal será modificada será modificada para se tornar um passeio atrativo e agradável. (Foto: Prefeitura de Barcelona)

Entretanto, os projetos mais claros e ambiciosos que favorecerão pedestres, ciclistas e pessoas com incapacidades físicas são as novas versões de dois “veteranos” do plano Cerdà original, a avenida Diagonal e o Passeig San Joan. A primeira é a célebre via que corta não apenas o Eixample, mas a cidade praticamente inteira, em sentido diagonal, e que é o endereço de diversas lojas luxuosas. “Queremos que a nova Diagonal seja um passeio atrativo e agradável, um magnífico ponto de encontro para revitalizar as relações pessoais e dinamizar a atividade econômica”, escreveu o prefeito Jordi Hereu em recente editorial sobre a reforma na avenida.

O curioso é que, em muitos trechos, embora dê prioridade aos veículos – não poderia ser diferente, sendo ela a principal avenida a cruzar a cidade, juntamente com a Gran Via -, a Diagonal já é agradável. Tem ciclovia em todos os seus mais de dez quilômetros de extensão, é decentemente arborizada e, em um terço do percurso, constitui-se numa rota para praticantes do cooper, com direito a barras de alongamentos a cada 500 metros. De toda forma, a prefeitura promete para o ano que vem uma série de obras, dentro da qual se destacam o aumento do espaço para pedestres, o plantio de mais árvores e a conclusão de uma importante parcela de trilho do trem elétrico urbano, o controverso Tram, que por fim ligará o noroeste ao sudeste da cidade sem emitir ruído ou produzir CO2.

Como fará isso, concretamente? Ainda não definiu o plano de ação, mas já começou um processo de consulta popular no qual pode opinar qualquer pessoa maior de 16 anos e que esteja empadronada (com domicílio declarado) na cidade. Há quem critique tal método, alegando que com isso a prefeitura demonstra não saber muito bem o que fazer, mas no mínimo a empreitada acerta ao explorar o perfil participativo da população da cidade. E também aposta em sua tradição de defender, sempre que possível, o espaço das pessoas antes do que dos automóveis.

Já o Passeig San Joan, que liga os descolados bairros Gràcia e Born, terá, também sob consultoria de moradores, um de seus trechos principais – entre a praça Tetuan e o Arco do Triunfo – transformado no que o prefeito chama de “eixo cívico”: os 12,5 metros atuais de calçadas passarão a 17 metros, haverá mais iluminação, jardins, árvores e brinquedos infantis. Acolherá mais idosos em mais banquinhos, mais crianças se divertindo. E passará, por fim, a rivalizar com outra avenida do Eixample, paralela, o mundialmente conhecido Passeig de Gràcia. Os pedestres agradecem.

  • Daniel Setti

    é jornalista e vive desde 2006 em Barcelona, na companhia de 1,6 milhão de pessoas.

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