As reproduções históricas da nossa fauna e flora, feitas pelos antigos naturalistas que passaram por aqui em séculos anteriores sempre me fascinaram. A perfeição de detalhes, as tintas que não desaparecem no tempo, o papel de fibra dando textura às nossas mãos; tal precisão só não supera as emulsões e pixels fotográficos, vendo como um registro técnico, porque muitas vezes os artistas colocavam suas interpretações às feições dos animais e das paisagens retratadas. Mas aí está a graça da arte, a liberdade de expressão, mesmo no mais alto rigor documental; parece que havia uma intenção subliminar do artista em dar graça, e um tom de bizarrice, para impressionar os czars e imperadores que pagavam por estas empreitadas em terras tupiniquins.
Quando vi a primeira prancha retratando o Cebus flavius pelos artistas de Marcgraave, pensei: “este macaco mais parece uma figura antropomórfica, uma carranca do Velho Chico”. Mas ao lembrar que isto ocorreu há 370 anos atrás, em terras hostis de mosquitos e doenças tropicais, entendi o conceito e a forma como estes desenhos devem ser interpretados. E foi neste universo de pinturas surreais que os pesquisadores Marcelo e Langguth entraram ao buscar algo que pudesse dar luz àqueles macacos com padrão tão diferente de pelagem. E me levaram junto neste caminho sem volta: entender a complexidade da biodiversidade buscando elementos históricos. Já havia tido esta experiência quando participei de um documentário que refez o trajeto da lendária Expedição Langsdorff, percorrendo milhares de quilômetros de rios brasileiros, descobrindo etnias indígenas e um inventário esplendido da biodiversidade brasileira.
Mas confesso que este trabalho com o Cebus flavius me pegou pelo calcanhar. Os estudos taxonômicos, a prudência e ética dos pesquisadores em vasculhar a história, antes de serem dominados pelo desejo incondicional de cientista em descobrir uma espécie nova. A busca incansável por grupos de macacos em pequenos fragmentos de mata atlântica, oprimidas pela monocultura avassaladora da cana. E conseguir, depois de árduas e desgastantes tentativas vãs percorrendo estas matas, registrar um filhote comendo um pedaço de cana ‘roubada’ do sítio vizinho.
Acompanhar a chegada de um casal de macacos no saguão de carga da TAM, assustados em caixas de madeira. E anos depois, fotografar a docilidade em forma de olhar, num filhote chamado Maria. E sem considerar qualquer analogia ao significado que este nome tem nos registros da história cristã, o fato é que este filhote nasceu banhado de esperança, um sopro de luz ao futuro da espécie de primata mais ameaçado do planeta.
Somos privilegiados em recontar, criar e fazer parte desta história.
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