Reportagens

Água doce à beira-mar

A Lagoa do Peri é uma rara alternativa de ecoturismo em Florianópolis. O parque ao seu redor oferece trilhas entre florestas e cachoeiras ainda bem preservadas.

Fernanda Martorano Menegotto ·
8 de dezembro de 2005 · 18 anos atrás

De longe, a vista só alcança uma ponta de lagoa. Meio escondida no caminho para as praias do sul de Florianópolis. Mas quem for em busca daquela pequena pista pode descobrir que nem só de água salgada são feitas as maravilhas naturais da ilha, capital catarinense.

Ali, pertinho do aeroporto Hercílio Luz, está o maior manancial de água doce da costa do estado. Com 21 km² de superfície, o Parque Municipal Lagoa do Peri é um recanto pouco conhecido pelos turistas. A lagoa, com 5 km² de águas límpidas e cor de esmeralda, fica no centro deste cartão postal. Localizado em meio a uma considerável biodiversidade ainda preservada, o parque é uma alternativa de turismo ecológico rara numa cidade que a urbanização galopante tem alterado a olhos vistos.

Onde mais é possível fazer uma caminhada de quatro horas, percorrendo quase 5 quilômetros de mata fechada, tendo como vista apenas verde e água? Assim é a trilha conhecida como “Caminho da Gurita”, que margeia a “reserva biológica” do parque. Esta é uma das três finalidades definidas quando o parque foi criado, em 1981. A reserva ocupa pelo menos um terço do total da floresta, chegando até as margens da lagoa, e permanece integralmente protegida.

Justamente pelo seu grau de preservação, a trilha tem lá seus riscos. É bom ficar muito atento ao que se encontra pelo caminho. Aranhas armadeiras e cobras peçonhentas, como jararacas e corais, transitam debaixo das pedras ou na copas das árvores. Não por acaso a administração da reserva sempre recomenda a companhia de um guia local – já que também é permitido fazer as trilhas sem guia.

No fim da maratona, a recompensa vale ouro: sítios arqueológicos intocados, córregos de água cristalina, belas cachoeiras, além de espécies peculiares da fauna e da flora – macacos, cotias, pica-paus, palmitos e guarapuvus (foto), árvore-símbolo de Florianópolis. De madrugada, jacarés e lontras têm o hábito de aparecer na margem da lagoa. “Vive-se aqui uma riqueza ecológica sem fim”, diz o biólogo que monitora o parque, Francisco Antônio.

A reserva biológica também abriga estudos científicos. O mais avançado é o projeto Lontras, que tem como objeto a população do mamífero semi-aquático ameaçado de extinção. Graças à parceria com o programa internacional Ecovolunteer, a Lagoa do Peri recebe pesquisadores e voluntários do mundo inteiro para analisar o comportamento e habitat desses animais. Outras duas pesquisas implementadas pela federal de Santa Catarina são realizadas no parque. Uma estuda as aranhas, a outra, os pássaros.

Moradores e lazer

Outra área do parque é a destinada à “paisagem cultural”. Ela abriga um pequeno povoado cercado de uma mata secundária com árvores frutíferas nativas. Também conhecida por Sertão do Peri, em virtude do clima quente e abafado, é muito procurada pelos que percorrem de montain bike a estradinha de barro onde carros raramente conseguem passar.

A visitação a este trecho costuma melindrar os fiscais. Como não é necessária autorização para explorar o parque, multiplicam-se no “Sertão” serviços turísticos de terceiros. “Essa história de ficar distribuindo folhetos e ganhando dinheiro dentro dfo parque não é correta. Tem de haver um controle maior, ou pelo menos uma colaboração mínima de quem passa por aqui”, conta o coordenador da reserva, Marcelo Ferreira. Ele se esmera pra cuidar de tudo, já que pouca gente colabora. “Se não fosse o controle dos nativos dos povoados, o lixo se espalharia por tudo. Volta e meia tem um saco plástico abandonado em cima das árvores, tampinhas de refrigerante, essas coisas”, relata.

Há cerca de 50 famílias vivendo no Sertão do Peri. A economia ainda é de subsistência, sustentada por um comércio rudimentar de produtos açorianos, como cestas de balaio e cachaça. Ferreira espera criar, ainda este ano, uma “eco-loja” com o artesanato dos nativos. Aos setenta e poucos anos, a dona de casa Cecília dos Santos diz que sua vida começou e vai terminar ali. “Adoro viver no meio desse mato. Meus filhos e netos foram criados nesta casa. Não dá pra sair”. A exemplo de outras famílias que moram há muitos anos na região, dona Cecília pode ficar tranqüila. É que o Plano Diretor do parque prevê a retirada apenas de ocupações recentes. Este ano, mais de dez invasores saíram por ordem judicial. A idéia, para os próximos meses, é criar finalmente um projeto de manejo para a área, depois de amplo estudo de sua topografia e recursos naturais.

Já na área de lazer, onde fica a Lagoa, os problemas de ocupação tornaram-se mais graves. Com freqüência, Ferreira e a Polícia Ambiental impedem a entrada de novos moradores. Além das invasões, são bastante comuns flagrantes de pesca predatória de espécies como sardinha, robalo, manjubão, carapicu, lambari, traíra, tainha, entre outras. Por outro lado, a pesca de linha em barco a remo sempre foi autorizada neste trecho do parque. Não é à toa que, quando o tempo firma, os visitantes disputam mesas e churrasqueiras nas proximidades do espelho d’água. A infra-estrutura ainda é muito simples, mas atrai quase 2 mil visitantes na alta temporada. A maioria, moradores de Florianópolis.

As trilhas da área de lazer são bem mais acessíveis que o Caminho da Gurita. Em apenas duas horas de poucos percalços, os visitantes conseguem aproveitar o Caminho do Saquinho. São pouco mais de 2 quilômetros que levam a pequenas praias, córregos e engenhos antigos. Para iniciantes, a dica é a Trilha da Restinga: também são duas horas de “viagem”, mas a caminha é bem leve. A paisagem não perde em beleza para as outras: córregos escondidos e a Praia da Armação à vista.

Além de uma sede administrativa, construída com apoio do Fundo Nacional do Meio Ambiente, há banheiros, restaurante, playground, churrasqueiras, chuveiros e até quartos para quem quiser dormir no parque. Com exceção do restaurante, tudo é gratuito. O próximo passo, segundo o coordenador, deve ser a cobrança de estacionamento. “Não podemos depender apenas da verba da prefeitura para o parque. O número de visitantes está aumentando”.

Zé do Peri

Os índios tupi-guaranis foram os primeiros a saciarem a curiosidade por aquelas praias de água doce. O nome da lagoa, segundo boa parte dos historiadores, foi escolhido pelos indígenas intrigados com a abundância da planta peri. Mais tarde, no século XVIII, foi a vez da colonização portuguesa se estabelecer, com um núcleo açoriano. Viviam dos engenhos de farinha, da produção de cachaça e da colheita do milho e da mandioca.

A outra versão sobre o nome da Lagoa é mais curiosa. Ela dá conta de que o aviador Antoine de Saint-Exupéry (famoso por ter escrito o livro O Pequeno Príncipe) teria passado uma ou duas vezes na região e, por puro estranhamento ao idioma francês, fora apelidado pelos nativos de “Zé do Peri”.

O sossego, obviamente, acabou. Quase dois séculos mais tarde, a ocupação e a exploração sistemática eram preocupantes. Florianópolis não parava de crescer. Na área da Lagoa, espécies como o palmito, a canela, o jacaré de papo-amarelo, as lontras, os macacos-bugios, as tilápias e as cobras-corais desapareciam numa velocidade assombrosa. O que era um pedaço de terra praticamente desconhecido virava atração turística.

Em meados dos anos 70, toda a região foi tombada como patrimônio natural, o que pelo menos impediu a retirada da areia fina que era usada para a construção de novas casas. Em 1981, a prefeitura criou o Parque Municipal Lagoa do Peri, abrangendo o espelho d’água e a floresta que se mantinha preservada no entorno. A administração ficou por conta da Federação Municipal do Meio Ambiente (Floram), e uma equipe de geógrafos, biólogos e outros pesquisadores propôs reordenar a ocupação da reserva. Daí surgiram as áreas de reserva biológica, paisagem cultural, e lazer.

Promissora divisão no papel. Difícil de implementar. “Sempre tivemos de fazer tudo sozinhos. Não há profissionais destacados especificamente para o parque. Eu, por exemplo, nunca tive turno fixo de trabalho. Tenho que vir aqui a hora que for necessário, até de madrugada, para atender denúncias de pesca predatória, por exemplo. Costumo coordenar a coleta de lixo. Uma vez quase uma tonelada de lixo ficou empilhada por aqui e ninguém fez nada”, diz Ferreira. Enquanto a vontade política não muda os rumos da conservação do parque, o jeito é tentar conscientizar os visitantes. “Nos preocupamos em alertar a população. Distribuímos mudas, incentivamos o replantio de árvores, procuramos dar força ao ecoturismo. É um paraíso que não pode ser perder”, conclui.

* Fernanda Martorano é jornalista de Florianópolis, atualmente morando no Rio de Janeiro.

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