Reportagens

O Éden perdido – com Elmo Amador

A Baía de Guanabara é provavelmente a coisa mais próxima do paraíso que houve na face da Terra. O geógrafo Elmo Amador conta como ela era e como ela se perdeu.

Marcos Sá Corrêa · Manoel Francisco Brito · Carolina Elia · Juliana Tinoco ·
21 de dezembro de 2005 · 18 anos atrás

As populações das cidades que se ergueram no entorno da Baía de Guanabara já não frequentam mais as suas águas como antigamente. Mas não se cansam de enaltecer e valorizar a sua paisagem, como se nela enxergassem a visão do paraíso. Não fazem a menor idéia de que um dia essa sensação se traduzia de forma bem mais concreta do que através de uma visão. Durante muito tempo, a Baía foi de fato um paraíso na Terra, que atraiu para suas bordas ao longo de pelo menos oito mil anos levas contínuas de agrupamentos humanos. Seus descendentes, que hoje se amontoam em cidades do porte do Rio de Janeiro e Niterói, não fazem a menor idéia do que perderam. Ainda bem que para reavivar a sua memória e reforçar a necessidade de conservar o que ainda sobra da Baía, existe gente como o geógrafo Elmo Amador. Ele a estuda há três décadas e sabe muito sobre essa região de história natural tão privilegiada que de fato parece ter sido criada por Deus. Discorre com intimidade sobre sua formação e sobre o que existia nela quando os portugueses oficializaram a descoberta do Brasil, em 1500. Dos 3 mil e 500 km2 de Mata Atlântica que cobriam seu contorno na época, sobraram menos da metade. Praias eram 100. Hoje, inalteradas, restam 6. Ilhas, já foram 170. Ficaram uma centena, a maioria arrasadas. É a memória desse Éden que o país deixou sumir que Elmo dedicou a primeira parte de sua entrevista de mais de duas horas concedida à O Eco.

Voce é carioca?

Elmo – Eu sou de Itajaí, Santa Catarina. Mas vim com 5 anos para cá. Então, sou carioca não é? Fui morar na Penha, depois Caxias. Aprendi a nadar no rio Meriti. Isso com 7, 8 anos, década de 50. Eu via muito caranguejo em mangue de água limpa.

É bom explicar que água de mangue é turva, mas é limpa.

Elmo – Tinha uma abundância de caranguejo e siri incrível naquela área. Eu lembro da Avenida Brasil, que estava sendo feita naquela época. Estavam acabando com a praia de Maria Angú, mais ou menos na altura da Penha. Era um lugar cheio de vida.

Você está com que idade?

Elmo – 62.

Quando você começou a estudar a Baía da Guanabara?

Elmo – Na década de 70.

Como você chegou nesse tema? Não era assunto que a cidade e a academia estivessem discutindo.

Eu comecei com pesquisa na área de geologia, como estudante ainda de geografia. Fazia o mapeamento da Bacia da Guanabara. Eu e uma professora, a Regina Mousinho de Mez, uma especialista em geologia do quaternário. Depois, já separado da professora Mousinho, fui estudar os sedimentos marinhos da região da Guanabara. Cheguei até as praias atuais e aí cheguei na Baía. Passei a estudar os seus sedimentos e um problema me chamou muita atenção na época: o assoreamento. Era uma questão pouco conhecida.

Ainda nos anos 70?

Elmo – Década de 70, início dos 80.

No início dos setenta aconteceu a construção da Ponte Rio-Niterói. O fundo da Baía estava sendo muito mexido na época?

Elmo – Muito.

Mas ninguém ligava?

Elmo – Poucos. Mas apesar disso, a década de 70 foi muito importante para o movimento ambiental. Foi quando o tema começou a despontar. É bem verdade que estava restrito à área acadêmica. E era muito setorizado. Não existia ainda essa visão multidisciplinar. A biologia olhava de um jeito, a geografia de outro. E dentro da geologia, nós criamos uma área que estudava também o meio ambiente.

Antes da 1ª Conferência Mundial sobre Meio Ambiente em Estocolmo, em 1972?

Elmo – Antes de Estocolmo.

Dava-se aula sobre meio ambiente? A cadeira, como se chamava?

Elmo – Não havia cadeiras. Dentro dos departamentos iam se formando comissões ambientais onde o assunto era discutido. Até na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Sociedade Brasileira de Geologia e na Associação dos Geógrafos Brasileiros foram criadas comissões desse tipo. Não existiam Ongs, apenas essas grandes entidades de conservação da natureza como a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza. Foi através dessas comissões que se organizaram as primeiras resistências contra as agressões à Baía.

Quais?

Elmo – A primeira resistência organizada aconteceu em 1979, quando o Mario Andreazza (ministro do Interior no governo de João Figueiredo) inventou o Projeto Rio. Era uma proposta de aterramento de mais de 27 km2 da Baía de Guanabara que envolvia a remoção de favelas na área da Maré. O terreno seria entregue à indústrias. A UFRJ ia ser atingida pelo projeto.

A UFRJ sempre foi fisicamente atingida pela degradação daquela área toda.

Elmo – Foi. Mas ela seria mais radicalmente atingida com o tal Projeto Rio. O Fundão seria anexado ao continente. A Universidade resistiu e a população das favelas também. Eles se organizaram muito bem na época em torno da CODEFAM (Coordenação de Defesa das Favelas da Maré). Essa combinação permitiu travar uma discussão legal contra o Projeto do Rio. E tivemos algum sucesso. Primeiro, conseguimos converter a intenção inicial do projeto, que era a remoção e transformação do local em área para a especulação da indústria. O projeto passou a ter um contorno mais social. Incorporou a idéia de fixar os moradores. Foi quando surgiram os conjuntos residenciais naquela região. No aspecto ambiental, forçamos a redução da intenção do Projeto de aterrar 27 km2 da Baía. Aterrou-se o estritamente necessário para a construção dos conjuntos, numa área que já era bastante degradada.

Quanto em percentual o aterro original roubaria da Baía?

Elmo – Atualmente ela tem cerca de 300 km2. Seriam quase 10%. Mas nunca é demais lembrar que a Baía já perdeu 90Km2 para outros aterros.

Vocês compraram outras brigas na época?

Elmo – Compramos outra briga também com um programa que previa a erradicação dos manguezais no fundo da Baía. Os terrenos seriam, novamente, vendidos para a indústria.

O papel dos manguezais na época, como sistema natural de filtragem da água, já era conhecido?

Elmo – No mundo científico sim, mas era conhecimento restrito e setorizado. A biologia tinha uma visão, a geologia outra. E para a sociedade mangue era coisa podre e associada, no Rio, à zona de prostituição. A idéia do sanitarismo no século XIX é que o mangue em si era a causa da malária. E essa visão, desse ecossistema como coisa ruim, persistiu por um bom pedaço do século XX.

Quando surgiu esse projeto?

Elmo – 78, 79.

Você está falando de uma área de mangue que em 79 estava bastante degradada também.

Elmo – Na área do fundo da Baía ainda havia uma extensão grande de manguezais que de fato já tinha alguma degradação. Esse programa de erradicação e drenagem chamava-se Projeto Fundo da Baía de Guanabara e nossa pressão fez o governo ceder. E ajudou a colocar o manguezal na mídia. Me lembro de várias reportagens sobre o mangue na TV, que ajudaram a inicar a difusão da importância desse ecossistema para as pessoas. Tudo isso forçou o governo a criar uma reserva na área. A criação foi feita a partir de estudos nossos sobre o assoreamento na região, exatamente onde aconteceria o programa de erradicação. Salvaram-se cerca de 80 km2 de manguezais que estão onde hoje é a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim.

Originalmente, qual a extensão dos manguezais na Baía?

Elmo – Na avaliação que a gente fez, históricamente existiam 270 km2.

A Baía de Guanabara provavelmente é a que melhor revela um paradoxo ambiental básico que é você ter uma paisagem teoricamente valorizadíssima, em área habitada por gente que se diz de praia e é ligada ao mar e que nunca parece ter se dado conta do que perdeu.

Elmo – A Baía de Guanabara é um Éden. Era.

Você pode inventariar o que se foi desse Éden?

Elmo – A Baía de Guanabara foi um paraíso tropical em uma determinada época. A história dela é longa e passa por uma evolução geológica toda específica. Os ecossistemas foram construidos à medida em que o nível do mar e o clima foram se alterando. Enfim, é uma história muito parecida com a história de construção de outros ambientes. Mas aqui, em função de certas características específicas de estrutura, geologia e clima, se desenvolveu um amálgama, um complexo de ecossistemas. Se formaram 14 ecossistemas em torno da Baía de Guanabara. Mata Atlântica com diversas subdivisões, montana, sub-montana, alto-montana, campo de altitude, manguezal, restinga, duna, várzea, pântano, brejo, alagado, costão rochoso, ilhas, praias, vai por aí, lagunas. Cada um desses ecossistemas com uma riqueza enorme, que gerava no seu conjunto uma abundância biológica maravilhosa. Eu acredito que em termos de área talvez fosse a de maior densidade de vida por área no mundo.

Em termos modernos não seria o lugar para se construir uma cidade, sim um Parque Nacional.

Elmo – Exatamente. O terreno se provou impróprio à ocupação humana desde o início. Tanto que a primeira a localização histórica do que viria a ser o Rio, tanto na várzea do Pão de Açúcar quanto no morro do Castelo, tinham um sentido apenas militar.

O Rio só ficou lá dois anos. É a única cidade do mundo que dois anos depois de ser inaugurada tinha uma coisa chamada Cidade Velha.

Elmo – Esses ambientes não permitiam uma ocupação permanente com adensamento populacional. No entanto se fez aí uma cidade com mais de 10 milhões de habitantes. E para abrigar essa população se soterrou brejos, alagados, se desmontou morros, aterrou-se a Baía, as lagoas. Quarenta lagunas desapareceram no centro histórico. Foi um saldo muito negativo. Foi criminoso. Aliás a Barra da Tijuca reproduziu uma história parecida. Se você perguntasse, na década de 70, que área da Barra da Tijuca poderia ser apropriada para urbanização, a gente diria que só 20%. Eram aquelas poucas áreas de restinga. As outras áreas foram ocupadas, mas com um preço muito alto. Tinham que fazer fundações muito profundas e caras. E com um resultado ambiental ruim.

Elmo, faz esse inventário para o leigo, sem falar em ecossistema. O que é que que tinha na Baía?

Elmo – Um conjunto de ambientes, cada um produzindo uma quantidade grande de plantas e animais, que geravam uma riqueza. A baleia é um exemplo que tinha na Baía e sumiu. Os jesuítas até falavam que era perigoso navegar na Baía por que se cruzava com as baleias o tempo todo. Havia uma abundância e uma reprodutividade enorme. E essa riqueza sempre atraiu populações para a região da Guanabara, em diversas épocas. Tem uma hipótese de que já existia um homem primitivo na região da Guanabara há 40 mil anos. Seria contemporâneo do Neanderthal e dos grandes mamíferos que foram extintos no pleistoceno superior, como a preguiça gigante e o tigre de dente de sabre. Nas pedreiras de Itaboraí, aquela da onde se extraiu calcário durante muito tempo, foi uma pedreira muito rica em fósseis. E foi lá que apareceram esses fósseis de mamíferos pleistocênicos e junto com esses fósseis, prováveis artefatos humanos. O homem com certeza viveu na Guanabara há 8 mil anos, atraída pelos sambaquis. E naquela época a Baía estava em processo de formação ainda.

Para o Warren Dean foi a civilização mais sustentável do mundo. Tinha comida ao alcance das mãos. Comia e jogava a casca fora.

Elmo – Essa riqueza que a gente falou, foi o atrativo de diversas ocupações, em diversas épocas. Há 40 mil, 8 mil anos foi a pesca. Há 4 mil, 2 mil anos foram os Sambaquis e os manguezais. Quando os colonizadores chegaram, não foi diferente.

A expedição de Duarte Coelho (no século XVI) registra que era a melhor região de águas que ele tinha visto no planeta.

Elmo – O Carioca era um rio sagrado dos índios.

Vários desses rios hoje nem existem mais.

Elmo – Foram fisicamente eliminados.

Você sabe de cor a vegetação que a Baía perdeu?

Elmo – Mata Atlântica eram 3 mil e 500 km2. Hoje são cerca de 1.250. É um percentual até razoável que sobrou, salvo pelo caráter montanhoso da região. Nem tudo é original. Uma parte são capoeiras que se recuperaram depois. Manguezais eram 270 km2, mais ou menos. Sobraram 80km2, protegidos principalmente na APA de Guapimirim. Restinga eram 260 km2. Não sobrou praticamente nada. Só um restinho na Ilha do Governador, no campo da Aeronáutica.

E ilhas?

Elmo – Eram mais de 170, hoje são cento e poucas. A maioria arrasada.

Você se lembra de quantas ilhas foram aterradas só no Centro da cidade?

Elmo – Melão, Moças, Cabras, Cobras. Foram dezenas no centro histórico. Praias o balanço é até pior. Hoje só existem umas 6 praias naturais na Baía. Eram mais de 100. Naturais é que não sofreram aterramento ou alterações físicas grandes. Por exemplo a da Moreninha, em Paquetá, foi aterrada. A do Flamengo é totalmente artificial. Copacabana sofreu alargamento, Botafogo idem.

Era um litoral bonito, recortado, cheio de enseadas, não é?

Elmo – E sobraram apenas 8 das 24 que existiam. Todas alteradas. Só no Centro Histórico tinha Gamboa, Saúde, Saco de São Diogo, Inhaúma e Praca da República. A Ilha do Governador perdeu umas quatro enseadas.

A Cinelândia era uma lagoa. A Praça Tiradentes era uma lagoa. A Esplanada do Castelo era uma lagoa.

Elmo – Havia diversas nesse trecho Centro-Tijuca. Eram mais de 10 lagoas. E 40 lagunas. Isso em 1500. Hoje só ficaram as de Itaipu e Piratininga. Mesmo assim muito alteradas.

E o que a Baía perdeu para aterros?

Elmo – Mais de 25% ou cerca de 90 km2. Debaixo dos aterros ficaram pântanos, brejos, morros…

Você tem um número impressionante da diminuição da diminuição da profundidade.

Elmo – O assoreamento é de fato acelerado. A Baía de Guanabara perdia naturalmente 18 cm por século, por assoreamento geológico. Esse valor está próximo de outros ambientes do mundo parecidos, não muito impactados. Depois passou para 24, 26cm por século, no começo no século XIX. A gente hoje registra valores superiores a 500 cm por século. Cerca 5 cm por ano de perda de profundidade.

Isso significa que a Baía estará totalmente aterrada quando?

Elmo – Um terço da Baía desaparece em menos de 100 anos. Outro terço em menos de 200. Sobra pouco menos de 1/3, que é o canal central, o rio. Seria um final da Baía. Da Ilha do Governador para Caxias, dá para ir a pé. A Baía de Guanabara, em função do seu assoreamento, está perdendo sua vida física. Com isso, vão sumir todos os seus usos benéficos como a navegação, a pesca, o transporte, atividades do estaleiro. Esses usos estão sendo perdidos na Baía.

Você disse que a Baía de Guanabara começou a estar em perigo em algum pedaço do século XIX.

Elmo – Por volta de1850, com o crescimento demográfico e os problemas associados. O o limite populacional da Baía era de algo em torno de 500 mil habitantes. Esse limite foi ultrapassado na metade do século XIX. Era mais ou menos o limite de sustentabilidade da Baía. Não é que 500 mil seja um número mágico, mas eu diria que aqueles 500 mil habitantes, vivendo aquela realidade e aquele padrão de consumo da época, gerando aquele tipo de lixo e resíduo, ainda mantinham a vida em torno da Baía sustentável. O esgoto que era produzido era carregado nas barricas pelos escravos e lançado na Baía. Mas a quantidade permitia que o material orgânico fôsse dispersado. E o lixo era produzido numa quantidade bem menor, além de ser totalmente diferente do de hoje.

Se você aplicasse essa equação para os dias de hoje, com o tipo de lixo que a gente produz, qual seria um tamanho razoável de população para que essa Baía permanecesse sustentável?

Elmo – Duzentos, no máximo 300 mil habitantes, levando-se em conta os nossos padrões de consumo e o que consumimos, que inclui uma série de rejeitos não-degradáveis, como plásticos, isopor, resto de lata, resto de embalagem, resto de papel. No século XIX, o lixo era primordialmente matéria orgânica que se decompunha. Você não tinha nada não-degradável. Na época o único produto não-degradável era o vidro.

Vamos andar até a última grande intervenção urbana na Baía, que foi a do prefeito Pereira Passos, no início do século XX.

Elmo – É difícil você combater o Pereira Passos no Rio de Janeiro.

Ele é um herói da urbanização?

Elmo – Herói para uns.

O que ele fez do ponto de vista ambiental?

Elmo – Um estrago.

Ele abriu a cidade da Praça Mauá para a Zona Sul e da Praça Mauá na direção do Caju. O que é que custou esse processo?

Elmo – Em termos geográficos, uma revolução. Toda a geografia do litoral do Caju a Copacabana foi alterada. Radicalmente. Pereira Passos é colocado como um grande empreendedor e realmente, para os padrões de intervenção e grandes concentrações de obras, ele foi. Mas se você olhar por um prisma social, político…

A crítica social já é até conhecida. A novidade é a crítica ambiental.

Elmo – O período Pereira Passos foi representado pela alteração do litoral. O que significou isso? Significou construções de grandes avenidas, como a Rio Branco, a Central, a Beira- Mar. Mas sempre através de aterros e demolições de monumentos naturais.

Era tudo associado. Voce demolia o morro e jogava o entulho na água.

Elmo – Com isso se produziu uma cidade, uma metrópole capitalista que fosse palatável aos investimentos daquele momento da história do capitalismo. Era a época da Light e dos bancos inglêses. Na história dos bairros do Rio de Janeiro, os organizados como Tijuca, Vila Isabel e Copacabana foram feitos por uma associação do capital inglês, poder público e o português, que era o dono do imóvel. Esses bairros tiveram uma presença do poder público em termos de saneamento, coleta regular de lixo. Os outros bairros, que foram criados sem a presença do poder público, como as favelas de hoje, são os bairros mais proletários dos subúrbios e da Baixada. Eles não tiveram essa atenção. Dá para traçar um paralelo entre o bonde e o trem. O bonde participou desse processo de organização dos bairros burgueses. O trem era para levar a população pobre cada vez mais longe da concentração do poder público. Você faz uma avaliação dessas cidades no entorno da Baía, do déficit do saneamento, do problema do lixo, e tudo isso tem a ver com essa história do modelo como foi apropriado o espaço e a natureza no Rio de Janeiro.

Descreve melhor como foi o processo de intervenção do Pereira Passos. O que é que sumiu? O que era maravilhoso e mudou?

Elmo – Sumiu o litoral mais recortado, mais acidentado, que era a orla da Prainha, que hoje é a Praça Mauá, Gamboa e Saúde, com aquelas ilhas do Pai, Melão, Cabras. O litoral do Centro, na Praça XV e no Passeio também perdeu seus recortes. Idem na Glória, Catete e Flamengo.

Se você chegasse aqui no século XIX e tivesse que escolher um lugar para fazer uma casa, onde você faria? Qual era o fino do fino do Rio de Janeiro?

Elmo – Os imigrantes europeus procuraram Botafogo e a região do Alto da Boa Vista, Tijuca e Santa Teresa. Isso na segunda metade do século XIX. Na primeira não tinha muita escolha. Você ficava preso ali naqueles quatro morros do centro histórico. Dom João VI foi para o Caju e São Cristovão.

Hoje lá é o fim do mundo.

Elmo – Naquela época era um bairro nobre, o bairro do imperador. Caju era o lugar onde tinha o banho do imperador.

Naquela região onde fica Manguinhos. Como é que era aquilo? O Oswaldo Cruz ia para lá de barco.

Elmo – Existia a enseada de Inhaúma, o estuário de Manguinhos.

E hoje você jamais associaria água em Inhaúma. Gamboa, Saúde. Ali eram praias importantes, bem em frente a Manguinhos.

Elmo – Tem um cenário antigo do Rugendas que mostra o pico da Tijuca ao fundo com a água no meio. Tenho impressão que aquilo ali é o Saco de Inhaúma. Tinha mais de 5, 6 km de mangue, de Baía com mangue.

E o Cemitério dos Ingleses, como era?

Elmo – O mar batia diretamente no Cemitério dos Ingleses. Chegava-se lá por barco. Você estava numa enseadinha. À base da igreja da Penha, você chegava de barco. Hoje você não acredita, mas isso não está tão distante assim. Estamos falando do final do século XIX.

E de muita movimentação de terra. De onde veio a terra que fez todos esses assentamentos, das dunas?

Elmo – Não, de morros que eram devastados. Para o aterro de Inhaúma uma dezena de morros foram arrasados.

As dunas foram destruídas mais para construção mesmo.

Elmo – Para virar areia de tijolo.




O Éden perdido – Parte II


Marcos Sá Corrêa, Manoel Francisco Brito, Carolina Elia e Juliana Tinoco

Na segunda parte de sua entrevista a O Eco, o geógrafo Elmo Amador mostra esperança em ver a Baía de Guanabara revigorada. “Nisso sou otimista”, afirma. O diagnóstico ainda é sombrio, principalmente quando se leva em conta tudo o que já se perdeu. Mas a situação, aos poucos, melhora. O que não exime os governos da obrigação de ordenar a ocupação desenfreada do entorno da Baía. Elmo sugere uma moratória completa das construções em áreas vulneráveis. É aí – na vontade política – que mora o perigo de ficar tudo como está. Ou andar para trás.

Você é uma das maiores autoridades em um assunto que mexe com a vida de umas 20 milhões de pessoas. As editoras disputaram o direito de publicar seu livro [“Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos”]?

Elmo – Estou com dificuldade, porque a edição é difícil. Tem muita figura. Teria que ter um trabalho de editoração. A Interciência até topou, a UFRJ ficou de ajudar…

O livro tem quanto tempo?

Elmo – É de 1997.

Quantos exemplares vendeu?

Elmo – Mil.

Algum político já virou para você e disse: “Eu quero governar o Rio de Janeiro e gostaria de saber como”?

Elmo – Os políticos me procuram permanentemente. Graças ao conhecimento da Baía, tivemos influência em alguns programas de governo. Na Bené [Benedita da Silva], e com Garotinho. Nossa visão da Baía produziu esses programas de governo. Só que eles não foram levados a sério. Com o Lula, a mesma coisa. Em termos de programa, fazemos bem. Dos programas para a implementação… Vladimir [Palmeira] está falando de novo que quer ajudar a fazer. O Globo procura também.

Mas você concorda que é um assunto que a cidade discute menos do que deveria?

Elmo – Deveria ser muito mais discutido. Foi matéria de CPI também. As informações que passamos foram importante para a CPI. Enfim, tem havido um certo desdobramento do que foi produzido. Fui obrigado a criticar um governo que foi eleito com um programa nosso, o da Bené. A Bené comemorou uma Semana de Meio Ambiente com obras de arrecifes artificiais de cimento, que ela queria botar na praia de Ramos. Aqueles arrecifes são importantes, mas naquela água parada, podre, sem oxigênio, sem nada? Ficou um acinte, uma coisa absurda. Aí, a gente deu uma malhada. Tinha uma empresa do Paraná que estava dando os arrecifes. Deviam estar dando uma parte para depois vender outra parte.

Tem como recuperar a Baía de Guanabara?

Elmo – Nisso sou otimista. Acho que é viável, é possível.

Se começasse hoje, levaria quanto tempo?

Elmo – Aí depende de cada ação. Existe um cálculo, de botar 4 bilhões de dólares, de 10 a 20 anos, para a questão do esgoto. O esgoto é o principal problema, o maior e mais volumoso. Os outros são acessórios.

Faça um balanço da situação atual.

Elmo – O assoreamento continua muito ruim. Suas causas não foram contidas. O desmatamento não acabou, a ocupação humana continua provocando a impermeabilização do solo e tem o esgoto despejado em grande volume. A matéria orgânica acelera a proliferação de algas, que morrem e se transformam em lama, lodo e geram outro tipo de sedimento.

As indústrias ainda poluem muito?

Elmo – A poluição industrial teve uma melhorazinha. Houve investimento e há controle maior. Isso reduziu a presença de metais pesados na Baía. Eu diria que metais pesados como mercúrio-cromo e chumbo não são mais tão fortes na Baía. Por isso talvez o peixe de lá possa ser consumido. O mesmo não se pode dizer dos mexilhões, organismo fixos, que funcionam como processadores.

E o vazamento de óleo?

Elmo – Também houve uma redução. Vazavam cerca de 10 toneladas por dia. Hoje está em torno de 3 a 4 toneladas. A queda está por conta das ações da Petrobrás, por causa do aperto depois do acidente de 2000.

Apesar disso, a Baía ainda está se degradando, não é?

Elmo – Alguns indicadores pioraram. Eu costumo separar degradação física das outras formas de degradação. Degradação física é destruição de ecossistemas. Isso é uma coisa que continua, apesar da quantidade razoável de Unidades de Conservação na Bacia. Parques Nacionais, tem o da Tijuca e o da Serra dos Órgãos. Há também a Estação Ecológica do Tinguá e a Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim. Tem dois Parques Estaduais: Três Picos e Tiririca. Isso tudo preserva, de uma certa forma, um testemunho da antiga opulência biológica da Baía.

Dê um exemplo.

Elmo – Ainda existe uma extensão razoável de manguezais no fundo da Baía que foram transformados na APA de Guapimirim e hoje estão relativamente bem preservados, cumprem o seu papel. É um ecossistema característico da Baía mantido numa extensão razoável. Existem ainda alguns costões rochosos da entrada da Baía que lembram a visão que os colonizadores tiveram: o Pão de Açúcar, Jurujuba e aqueles ecossistemas associados. Algumas ilhas paradisíacas, Jurubaiba, Itauquinha. Em termos visuais.

Mas basta olhar para as águas…

Elmo – Se você for olhar para as águas, todas as praias estão impróprias para o banho. As pessoas ainda fazem esportes náuticos, iatismo, mas não podem mais ter contato com a água. Mergulham, mas com risco de contrair doenças. Por outro lado, a Baía de Guanabara tem uma renovação no canal central a cada 60 dias. Só essa renovação já assegura uma possibilidade de vida permanente. Você tem sempre uma água de boa qualidade entrando na Baía, fazendo a troca. O problema são as reentrâncias no seu litoral, que são pouco renovadas e portanto zonas de estagnação grande.

Como está a situação do lixo?

Elmo – Lixo é um grande problema da Baía, mas tende a ser equacionado. Algumas ações recentes vão ajudar muito, como novos aterros sanitários. Tipo o de Adrianópolis, em Nova Iguaçu, que é considerado um modelo. O próprio aterro de Gramacho, que hoje deixou de ser um lixão, tem tratamento controlado. Está esgotado, vai ser transferido para algumas daquelas opções da prefeitura, provavelmente Paciência. Ainda tem problema com o aterro do Morro do Céu, em Niterói, mas o de São Gonçalo está em processo de melhora. Outras cidades da região estão investindo na melhoria de seus aterros. Infelizmente, nesse balanço do lixo, ainda sobram cerca de 2 mil toneladas, das 14 mil produzidas diariamente, que não são coletadas e tratadas corretamente. E parte desse total de lixo diário, cerca de 100 ou 200 toneladas, chega até a Baía gerando lixo flutuante. Não é o problema mais grave, mas é o de maior visibilidade. Está melhorando, graças a um programa de coleta por cooperativas comunitárias.

Onde está o buraco negro?

Elmo – Saneamento, esgoto. E assoreamento. Na Baía de Guanabara, só é tratado de 15% a 20% do total do esgoto gerado. É muito pouco.

O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) previa uma série de estações de tratamento. Ficaram na promessa?

Elmo – Nove estações foram construídas dentro do PDBG. Não tratam nem 25% da carga total prevista. Mas acho que o problema será resolvido. Ficou faltando botar o esgoto no cano. As obras tiveram sérios problemas de aplicação de recursos e de gerenciamento. Vamos acreditar que o trem volte para o trilho, que a gente consiga recuperar o prazo, terminar tudo, fazer a rede fina. Então as estações vão chegar à sua plenitude de carga. Mas resolve o problema do esgoto da Baía? Não. Na verdade esse conjunto pode reduzir o esgoto a menos da metade. Outro conjunto ainda precisa ser formulado.

Em São Gonçalo, há áreas que estão abaixo da estação de tratamento. Não há como fazer o esgoto chegar até ela a não ser bombeando, o que é proibitivo.

Elmo – É verdade. A cidade está abaixo da estação.

Isso nos leva à questão das ocupações irregulares.

Elmo – Houve um crescimento desigual. Em alguns bairros interessava investir porque havia retorno, gerava mercado de consumo, visava à classe média, média-alta. Outras áreas ficaram à margem do processo. Essas é que hoje estão precisando ser saneadas, ter um sistema de lixo adequado. No centro histórico do Rio de Janeiro existiam as mais antigas estações de esgoto da América Latina: a da Penha e a da Glória. Naquele momento a questão do esgoto estava resolvida. Depois, com o crescimento nessa área em que o poder público não entrou, a coisa desandou. A ocupação tem que ser planejada. Sem controle da ocupação, vai ser um desastre.

Por quê?

Elmo – Ocupação irregular não tem sistema de saneamento básico. Não tem sistema de coleta adequada de lixo. Causa outras agressões físicas, como desmatamentos. E contribui para o assoreamento.

Dá para urbanizar essas áreas? Ou elas são tão sensíveis que urbanizar só piora a situação?

Elmo – A pergunta é complexa. Existem áreas em torno da Baía que não poderiam ter sido ocupadas. Por exemplo, as que sofrem periodicamente inundações. São áreas que naturalmente inundavam, como uma região de Caxias, Campos Elíseos, a Pavuna. Na própria região aqui do Centro Histórico há outras semelhantes, como Maracanã e Botafogo, que são áreas baixas. Essas, de presença urbana mais antigas, foram ocupadas por desconhecimento da realidade. As recentes, por negligência. A gente tem formulado propostas de não-ocupação dessas áreas. Tanto as áreas de encosta, por causa da instabilidade, como áreas sujeitas a inundações.

Mas as ocupações continuam.

Elmo – Continuam. Normalmente são clandestinas, estimuladas por um político. Tem sempre um padrinho com interesse eleitoral. E repete-se esse ciclo de deslizamentos, inundações e impossibilidade, ou pelo menos dificuldade, de se executar obras de saneamento.

Não é melhor a remoção dessas áreas?

Elmo – É complexo. Pelo menos se deveria inibir esse tipo de crescimento com uma moratória. A partir de hoje, nem mais um centímetro quadrado de ocupação em área vulnerável. Tanto no centro como nos morros do Rio e na áreas no entorno da Baía. Mas para isso funcionar você precisa ter projetos habitacionais. E ao mesmo tempo reverter esse modelo de excessiva urbanização do país. Só na porrada, não vai dar certo.

Mas não interessa, né?

Elmo – É, não interessa. Dá a impressão de que se trabalha para o caos mesmo. Existia a FUNDREM, que era a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana [criada em 1975]. Era importante, e acabaram com ela [foi extinta em 1990]. Com isso, acabou toda uma articulação que existia nos municípios da Baía.

Qual é sua avaliação do PDBG?

Elmo – O investimento foi necessário. Existem diversas críticas ao PDBG. Primeiro, ele não foi um programa holístico. Só visou o saneamento básico. Só esgoto, um pouco da água, muito pouquinho do lixo. E botou um penduricalho na área de projetos ambientais complementares, como melhoria da Feema, da Cedae. Ou seja, o programa se desobrigou do plano ambiental. Apenas se apropriou do termo ambiental: Programa de Despoluição da Baía. É um termo fantasia. O Estado, por sua vez, não investe na área ambiental. O programa poderia incluir uma parte do recurso para o plano ambiental, e não incluiu. E o Estado não inclui. Impropriamente, o programa foi colocado como a redenção da Baía.

O Garotinho fez propaganda inaugurando estações de tratamento que nunca funcionaram.

Elmo – Todos os governadores, em algum momento, anunciaram o programa como redenção da Baía. O Moreira Franco também. E não é verdade. A gente levou um tempo batendo, criticando. É um programa menor, tem que falar a verdade. A gente precisa de um programa que, à parte do saneamento básico, que deve ter continuidade, considere as outras questões ambientais da Baía também.

Por exemplo?

Elmo – Um impacto que pouca gente conhece é a dessalinização. A água da Baía está ficando mais doce, por causa da transposição de águas de bacia. O rio Guandu não deságua naturalmente na Baía de Guanabara, e sim na Baía de Sepetiba. Vem da bacia do Paraíba do Sul. Mas está chegando na Baixada, porque é bombeado, a população usa e o efluente vem para a Baía de Guanabara. O que é apregoado como qualidade do PDBG, é na verdade um grande problema. A Baía tem sua água cada vez mais doce. Isso afeta tudo.

Antigamente os rios tinham uma oportância enorme para a Baía.

Elmo – Os rios eram navegáveis. Tinham essa função de troca. Hoje pouquíssimos têm. Dos rios da Baía, praticamente só ficaram naturais aqueles meandrozinhos da APA de Guapimirim e os trechos de alto curso dos rios, encachoeirados, normalmente associados à Serra dos Órgãos. Tirando isso, todos os outros foram alterados por valas e canais artificiais.

Todos?

Elmo – Todos. Eram 55 rios. Hoje você não tem nenhum inteiro e natural. No máximo segmentos. A diversidade ao longo do percurso é necessária para o rio. Hoje existe no mundo uma tendência de ver rio, praia, laguna, com uma visão mais natural, de renaturalização. Mas, na prática, aqui no Brasil ainda não. Aqui está tão atrasado. As intervenções que estão fazendo nas lagunas são do tempo de chumbo do sanitarismo.

Os aterros?

Elmo – Os aterros entram no conjunto das intervenções da Serla [Superintendência Estadual de Rios e Lagoas]. A Serla está utilizando recurso do FECAM [Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano], para alavancar diversas ações no estado.

Você acompanha o problema do esgoto na Barra da Tijuca?

Elmo – Acompanho e não sei o que eles vão fazer. A Assembléia Legislativa fez um abrandamento da lei que obrigava a ter tratamento primário completo. Aprovaram uma proposta de abrir uma exceção para esse emissário da Barra.

Quando abre uma exceção…

Elmo – É, talvez nunca mais venham a fazer. Esse é o perigo. O emissário de Ipanema também previa uma estação de tratamento. Pergunta se foi feito…

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Juliana Tinoco

    Juliana Tinoco é jornalista multimídia especializada na cobertura de Meio Ambiente, Ciência e Direitos Humanos. Por quinze an...

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