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Tem boi na linha

As queimadas no Acre estão associadas à expansão do rebanho bovino no estado, que foi o segundo que mais cresceu na Amazônia Legal nos últimos anos.

Carolina Elia ·
2 de outubro de 2005 · 19 anos atrás

As florestas do Acre não fogem ao que já virou regra na Amazônia: elas são derrubadas e queimadas para dar lugar a pastos. Entre 1990 e 2003, o estado teve a segunda maior taxa de crescimento de rebanho bovino do país. Cresceu 13%, perdendo por pouco para Rondônia, que liderou com 14%. Segundo o pesquisador Paulo Barreto do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a aceleração do processo pecuário nesses dois estados contribuiu para o aumento das queimadas. E a abertura de pastagens ainda levou à fragmentação da floresta, deixando a mata mais suscetível a incêndios.

O exemplo perfeito é a Reserva Extrativista Chico Mendes, uma área de quase um milhão de hectares criada em 1990 no sudeste do Acre para evitar o processo de pecuarização na região. “Toda a floresta ia ser derrubada. Procuramos estagnar esse processo”, diz Anselmo Forneck, diretor do Ibama no estado. Mas até hoje o governo federal não conseguiu expulsar de seu interior pequenos empresários e até funcionários públicos que criam bois dentro da reserva – o que é proibido por lei. Este ano, as queimadas realizadas para limpar roçados e pastos nas propriedades saíram de controle devido à seca atípica que o Acre enfrenta e incendiaram a floresta. O fogo demorou quase duas semanas para ser controlado e imobilizou desde a direção do Ibama até 150 bombeiros de Brasília, que foram enviados para apagar as chamas. No dia 3 de outubro, a ministra Marina Silva sobrevoa a região para testemunhar o estrago.

A Reserva Extrativista Chico Mendes está localizada na região do Acre mais degradada pelo homem. Nos seus arredores estão Rio Branco, Xapuri, Brasiléia e outras cidades que em setembro foram parar nas manchetes dos jornais por terem tido plantações inteiras lambidas pelo fogo e a população adoecida pela fumaça. É nesta região que se concentra a maioria dos pastos do estado e, segundo uma pesquisa do Imazon sobre a expansão da agropecuária no norte do país, uma das quatro áreas em toda Amazônia onde a pecuária tem tudo para expandir.

Em 2005, o Acre foi reconhecido internacionalmente como um estado livre de febre-aftosa. Apesar da seca, o nível pluviométrico da região onde estão os pastos é de 2000mm de chuva por ano. As regiões da Amazônia mais cobiçadas para a prática da pecuária são aquelas onde chove anualmente entre 1.600 mm a 2.200 mm. A ausência de geadas e a relativa abundância e distribuição de chuvas aumentam a disponibilidade de capim e, conseqüentemente, a produtividade das pastagens. Um outro sinal dos novos tempos é que, pelos cálculos do Ibama, 98% dos filhos de seringueiros trabalham hoje em fazendas.

Mas o Acre não é um estado apenas de grandes e médias propriedades. Pelo contrário, tem muitos lotes distribuídos pelo Incra para agricultura familiar e seus moradores recebem incentivos do Fundo Constitucional do Norte, um programa de crédito para agricultores e pecuaristas da Amazônia que financia indiretamente a derrubada da floresta. Segundo o Imazon, é comum os satélites registrarem queimadas em porções florestais de assentamentos de reforma agrária na Amazônia. No ano passado, o pequeno agricultor foi responsável por 62% do desmatamento realizado no Acre.

O estado está entre os cinco maiores produtores de carne da região amazônica. Páreo a páreo com Pará, Mato Grosso, Rondônia e Tocantins. Juntos eles abastecem Amapá, Amazonas, Roraima e parte do mercado nacional. Ainda assim, o tipo de pecuária praticada no Acre é, em geral, o de baixa produtividade. Que normalmente está associado à ocupação especulativa de terras em novas fronteiras agropecuárias, plantio de pasto sem limpeza apropriada do solo – sinônimo de desmatamento e queimadas – e degradação do solo.

Estudos sobre pecuária de baixa produtividade sugerem que parte do crescimento do rebanho é estimulada por motivos especulativos, como o ganho pelo aumento do valor da terra ou como forma de conseguir título de posse, e por subsídios governamentais. Segundo pesquisa do Imazon, uma das características da Amazônia que contribui para a expansão da pecuária na região é o acesso relativamente fácil a terras públicas e a baixa aplicação da lei florestal. Esses fatores permitem o acúmulo de capital por meio da exploração de madeira e parte desse lucro é investido em pecuária. Fora isso, o Fundo Constitucional permite associações contratarem crédito em nome de pequenos produtores que não possuem o título definitivo das terras.

Enquanto isso, o Brasil desponta como o maior exportador de carne bovina no mundo, o que pressiona a fronteira pecuária para dentro da floresta. Segundo o Imazon, entre 1990 e 2002, o rebanho bovino da Amazônia Legal mais que dobrou e registrou uma taxa média de crescimento anual 14 vezes maior que no restante do país. Para o mesmo instituto de pesquisa existem três medidas a serem tomadas para permitir que bois e floresta coexistam: proteger as terras públicas ricas em biodiversidade através da criação de reservas e parques, combater a ocupação ilegal e o desmatamento de terras públicas florestadas e aperfeiçoar a gestão ambiental de terras privadas. No Acre, se poderia começar pela região da Reserva Extrativista Chico Mendes.

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