Reportagens

Conservação privada é essencial

Segundo nova pesquisa, 100 milhões de hectares de vegetação nativa não estão protegidos. Por isso áreas de reserva legal não deveriam ser reduzidas.

Nathália Clark ·
23 de fevereiro de 2011 · 13 anos atrás

Platéia cheia: seminário organizado por Frente Ambientalista concorreu com palestra de Aldo Rebelo, que estava em sala próxima (foto: Nathalia Clark)
Platéia cheia: seminário organizado por Frente Ambientalista concorreu com palestra de Aldo Rebelo, que estava em sala próxima (foto: Nathalia Clark)
Brasília – Para além da paixão, a ciência. Esse foi o mote do seminário “Código Florestal: aspectos jurídicos e científicos”, realizado nesta terça-feira, 22, na Câmara dos Deputados. A intenção foi discutir os fatos reais, comprovados científica e legalmente, mais do que uma “briga rasa e superficial entre ruralistas extremados e ambientalistas apaixonados”, segundo palavras de Antônio Nobre, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Organizado pela Frente Parlamentar Ambientalista e Instituto O Direito por um Planeta Verde, o evento lotou o Plenário 2, enquanto, coincidentemente, a apenas alguns metros dali, na sala 13, o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) falava para não muito mais do que uma dúzia de ouvintes.

Estavam presentes pesquisadores e cientistas representantes da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Foi apresentada parte de um estudo que teve início em julho de 2010 e ainda está sendo finalizado pela SBPC. O documento demonstra, entre outros destaques importantes, que, como está a lei hoje, há um vazamento da ordem de cerca de 100 milhões de hectares de vegetação nativa sem proteção e passíveis de desmatamento. E que na abordagem atual, a conservação em áreas privadas supera a conservação pública, daí a importância de não deixar que se afrouxem as regras para preservação nas propriedades particulares.

Clique aqui para ver sumário do estudo

 

Compondo as apresentações acadêmicas, o professor Gerd Sparoveck, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), demonstrou que no modelo de agricultura que se tem hoje, a maior parte das áreas utilizadas no setor são áreas de pastagem, equivalentes a 211 milhões de hectares (ha).

Destes, apenas 61 milhões de ha são área de pasto com alta aptidão para pecuária, e somente 57 milhões de ha são de fato destinados à pratica. Segundo ele, isto demonstra que há capacidade para destinar pelo menos 69 milhões de ha (dos 211 milhões de ha) para outros fins e usos, ou mesmo para a própria Reserva Legal da propriedade. “E para isso basta uma análise técnica de pecuária extensiva mais acurada, sem demanda de altos custos e tecnologias”, afirmou.

Ainda de acordo com o estudo, a área total de vegetação nativa no país é de 537 milhões de ha, sendo que 170 milhões de ha estão em Unidades de Conservação (UC) ou Terras Indígenas (TI) já consolidadas, e 100 milhões de ha são Área de Preservação Permanente (APP). Restam 294 milhões de ha fora de UCs, TIs ou APPs, que corresponde a terra privada. Ou seja, o maior estoque de vegetação nativa que o Brasil possui é onde mais será impactado caso as mudanças no Código sejam aprovadas.

Para ficar legal

Antônio Nobre: mesmo sem mudar Código Florestal, ainda haverá muito por fazer para proteger matas (foto: Nathalia Clark)
Antônio Nobre: mesmo sem mudar Código Florestal, ainda haverá muito por fazer para proteger matas (foto: Nathalia Clark)

Para uma adequação legal dos produtores ao Código Florestal atual, dos 100 milhões ha de APPs faltariam, no mínimo, 43 milhões de ha de vegetação nativa, e dos 236 milhões de ha destinados a Reserva Legal faltam 42 milhões de ha. A conclusão a que chegam os pesquisadores, então, é que a legislação hoje protege apenas 7% das propriedades privadas, quando deveria proteger 17%, ou seja, “já estamos muito aquém em questão de conservação mesmo sem mudar nada, com o que se propõe ficaremos ainda mais distantes”, disse Antônio Nobre.

Os principais problemas da lei atual, segundo os cientistas, são o descumprimento e o vazamento que já existem. Para eles, esse é mais uma causa de falta de planejamento agrícola e ambiental do que de mecanismos: “todas as possibilidades já são previstas no Código Florestal vigente, basta fazer políticas públicas para instituí-las”.

Impactos na biodiversidade e cidades

Por ser um país megadiverso e campeão em biodiversidade no mundo, o Brasil tem enorme oportunidade de desenvolver uma economia sustentável, mas possui também a grande responsabilidade de conservação dessas espécies. Temos hoje 20% das espécies totais do planeta, sendo 870 anfíbios, 1820 aves, 650 mamíferos, 720 répteis e 55 mil plantas.

Segundo o estudo da SBPC, as áreas de APP, que serão reduzidas pelas alterações propostas (de 30 para 15 metros nos rios com até 5 m de largura), são insubstituíveis em função da biodiversidade perdida, seu alto grau de especialização e endemismo. Além disso, as matas ciliares são abrigo e habitat para muitos animais nativos. Com o desmate dessas áreas, os rios serão assoreados, jogando quantidade de sedimentos na água que impedirá entrada de luz e implicará na perda de peixes e outros organismos aquáticos.

Além disso, muitas APPs são em zona urbana, cujos rios sustentam as cidades próximas. Os cientistas apuraram que o custo para tratamento da água para consumo humano passará de R$ 2/3,00 por 1000 m³ de água tratada, para R$ 250/300,00. Os rios com menos de 5 metros de largura representam mais de 70% dos recursos hídricos do país, que seriam afetados.

Na Amazônia, a Reserva Legal é fundamental para manter as grandes áreas de mata conjunta. Nas áreas mais fragmentadas, como na Mata Atlântica, ela é de grande importância para os chamados trampolins ecológicos. De acordo com o professor José Antonio Aleixo, secretário da SBPC, “já estamos sentindo os efeitos do não cumprimento da lei: em 1968, tínhamos 13 espécies da flora ameaçadas de extinção, em 1992 esse número passou para 108 e, em 2008, para 472”. (Veja estudo recente do Ipea sobre Biodiversidade)

Definição de APP em área urbana

Quanto à questão das APPs em área urbana, Carlos Nobre, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e agora secretário do Ministério de Ciência e Tecnologia, afirmou ser necessário que nos princípios basilares fundamentais do Código exista o princípio da preservação da vida humana. Uma vez que 83% da população brasileira vive na zona urbana, e a maioria das APPs nesses locais são áreas de risco para ocupação irregular, ele afirmou que é imprescindível assegurar que essa ocupação não ocorra.

“Segurança humana seria não permitir ocupação irregular, em lugares com declividade maior do que 25 graus. Concluímos que deve-se buscar definir a chamada passagem da inundação como área que não pode ser ocupada. Os parâmetros são variáveis de lugar para lugar, mas esse tipo de declividade não é recomendável de qualquer forma, inclusive porque perderá vegetação natural, forte causa de erosão”, argumentou Nobre.

Aspectos jurídicos

O instituto O Direito por um Planeta Verde levou Gustavo Trindade, ex-consultor jurídico do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para comparar a legislação atual com o susbtitutivo. Segundo ele, o Artigo 25 da legislação, que dita sobre os Programas de Recuperação Ambiental, não foi plenamente atendido na proposta. “O conceito de Reserva Legal apresentado reverte o da Constituição, pois passa a ter como função assegurar o uso econômico da propriedade ao invés de promover a conservação ambiental”.

Segundo ele, é prevista a redução de RL para fins exclusivos de regularização, não de recomposição, para os imóveis que suprimiram vegetação, e ainda é permitido que seja computada no percentual da RL a área de APP. “A necessidade de restauração tem que ser contemplada e valorizada no substitutivo”, afirmou.

De acordo com o jurista, o Artigo 47 diz que durante o período de 5 anos de vigência da Lei do Programa de Regularização Ambiental (PRA), não é permitido a supressão de vegetação, já o substitutivo admite a manutenção de atividades agropecuárias danosas à cobertura vegetal.

Ao invés de união e consenso, disputa

Sobre a possível “concorrência” da palestra de Aldo Rebelo no mesmo dia e horário, Paulo Adario, coordenador do Greenpeace, colocou a questão: se a pauta é de interesse geral da Casa e mais, de todos os brasileiros, não seria justo esse o momento de estarem os dois lados reunidos na busca de um consenso?

Ele lamentou a ausência do relator do parecer que prevê a substituição da lei ambiental: “O senhor Aldo disse que consultou a ciência, mas agora ela está aqui, e lamentavelmente ele está lá. Discute-se aqui o futuro do Brasil. Na voz do deputado parecíamos ouvir um gravador ligado ao passado”

. Adario colocou ainda que o projeto proposto até agora tem como foco principal a anistia (a desmatadores). “Foi aprovada aqui na Câmara a anistia a quem desrespeitou a lei, mas se eu não me engano, esta é a casa que faz as leis”, ironizou.

LEIA A COBERTURA COMPLETA SOBRE O CÓDIGO FLORESTAL

  • Nathália Clark

    Nathalia Clark é jornalista na área de meio ambiente, desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas, justiça social e direitos humanos.

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