Reportagens

Novos tempos para o Médio Juruá

Programa comunitário de monitoramento de fauna transforma caçador em aliado da pesquisa e manejo de reserva no interior do Amazonas.

Vandré Fonseca ·
26 de dezembro de 2010 · 14 anos atrás

RDS Uacari – Quando Raimundo olhou para o céu, já soube que não ia ser difícil encontrar os bichos no mato. Era uma manhã agradável, diferente do calor do início do ano, ventava pouco e havia uma certa umidade no ar, que saía da sombra da floresta. Com a camisa de manga comprida e espingarda pendurada no ombro, pegou a trilha. Caminhou por algumas centenas de metros, pisando sobre as folhas úmidas da serrapilheira.

– Quando tá muito sol, as folhas ficam secas e fazem barulho quando a gente pisa. Espanta a caça – conta Raimundo. – E o vento, quanto tem, ajuda os bichos a sentirem nosso cheiro.

Muitos pássaros cantam na região do rio Bauana, afluente do Juruá. São cerca de 15 espécies já reconhecidas, mas eles nunca haviam despertado a atenção de Raimundo, que começou a caçar aos 8 anos de idade. Naquele tempo, para alcançar o gatilho, precisava colocar a espingarda embaixo do braço. Aos passarinhos, ele preferia queixadas, veados, antas ou até nhambus, pássaro grande o suficiente para alimentar a família.

– Caçar passarinho não sustenta e é mais difícil de acertar –, explica.

Mas hoje, os cantos de pássaros são ouvidos com atenção, em busca de um assovio, de um granido, de um pio diferente. E no caminho ele encontra um rastro de anta. Bicho grande para alimentar a família e os vizinhos no almoço e no jantar. Será que o dia de sorte pode trazer também rastros de queixada?

– Prefiro ir atrás da queixada, porque é mais fácil, tem sempre bastante e é melhor de pegar. Anta, é grande, mas tem uma chance só, se ela fugir, o dia tá perdido.

Raimundo segue seu caminho. Vê que uma onça parda, jaguatirica ou puma, como dizem outros, passou por ali. Descobre também que podem haver veados. Acompanha com os olhos passar um bando de lilicas – sauins bigodudos que sempre são encontrados por lá. Desta vez ele não viu, mas sabe que aqui tem também um macaco maior, o Uacari Branco (Cacajao calvus). A região do Médio Juruá tem uma das maiores diversidades de primatas da Amazônia, são 19 espécies conhecidas. E o ribeirinho nem precisou andar o dia inteiro para ver o rastro deixado pelo bando de queixadas. Que manhã!

Antônio Raimundo Aquino já tem 37 anos. Nasceu pelas bandas do Médio Juruá, interiorzão do estado do Amazonas. Desde o dia em que teve forças para carregar a espingarda, cortou seringa para os patrões do Juruá. Foi quando também, numa destas caminhadas mata adentro, acertou o primeiro bicho, que ele nem se lembra mais qual era. Era caça, era almoço. Diz atirar bem e tem história para confirmar. Matou 13 onças, entre pardas, pintadas e pretas.

– Quando o bicho tá perto das casas, né? Tem criança, tem criação, tem que matar para proteger”, – se desculpa.

Muita gente lá do Médio Juruá precisou dos serviços de Raimundo, o Diaçúcar – apelido que tem a ver com a facilidade que faz filhos, que começaram a nascer quando ele tinha 14 anos de idade. O pai dele também caçava, e um dos filhos também tem excelente pontaria. Raimundo diz que aprendeu sozinho. Coisas do instinto de quem sobrevive na floresta e precisa enfrentá-la para garantir a comida e manter a família.

Novos tempos

Treino dado aos ribeirinhos sobre monitoramento de fauna (foto: Angel aReese-Walkin)
Treino dado aos ribeirinhos sobre monitoramento de fauna (foto: Angel aReese-Walkin)

Uma vez por semana, Raimundo percorre, ida e volta, os cinco quilômetros de trilha aberta no meio da floresta atento aos indícios e animais que encontra pelo caminho. Mas queixadas, veados e antas estão a salvo, agora. As onças também, a não ser que ameacem alguma comunidade. Há muito tempo, Raimundo deixou a vida de caçador. Primeiro, para ser agente ambiental. E há três anos, passou a ser monitor da fauna. O antigo matador de bichos usa o instinto e tudo o que a vida ensinou para ajudar a proteger animais que vivem na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari.

O caminho que segue hoje foi definido por cientistas, que precisam de métodos para que os dados sejam válidos. Se Raimundo ainda fosse caçador, não perderia tempo na trilha, seguiria pela beira d’água onde os bichos matam a sede e são mais fáceis de serem encontrados.

As informações são entregues ao Programa de Monitoramento da Biodiversidade e dos Recursos Naturais em Unidades de Conservação Estaduais do Amazonas (Probuc), um nome extenso para uma iniciativa que treina e emprega as comunidades tradicionais para obter informações sofre bichos e plantas da região e como estes recursos são utilizados pelos ribeirinhos.

– Os pilares do programa são o foco as ameaças, a simplicidade o baixo custo e a participação das comunidades, por meio do empoderamento e a gestão participativa – explica o biólogo Sinomar Ferreira da Fonseca Júnior, coordenador do Probuc.

O Probuc começou em 2006. Os primeiro passos foram dados com o planejamento e escolha da RDS de Uacari para a implantação. E a partir dali, foram necessárias muitas viagens entre Manaus e Carauari (município onde fica a reserva), para a apresentação da proposta e o início do curso de capacitação. Diversas reuniões e oficinas foram realizadas com as comunidades. Primeiro, para que elas conhecessem o programa, depois para mobilizá-las para a implantação.

– Os ribeirinhos já sabiam que não podem cortar as árvores para tirar o buriti ou o açaí, só precisaram entender que o mesmo princípio deve ser aplicado para outros recursos, como a caça, priorizando machos e evitando abater evitar filhotes ou fêmeas prenhas – conta Sinomar.

Em época de desova ribeirinhos revezam-se em turnos de 8 horas de vigilância e contam os ovos depositados pelas fêmeas (foto: Renata Preto)
Em época de desova ribeirinhos revezam-se em turnos de 8 horas de vigilância e contam os ovos depositados pelas fêmeas (foto: Renata Preto)

A lição ficou mais clara com a observação dos tabuleiros onde tartarugas e tracajás desovam anualmente. Bichos de casco e o ovos fazem parte do cardápio das comunidades da RDS de Uacari. Mas as praias onde os animais são encontrados na vazante estavam cada vez mais vazias, culpa em parte do consumo local, mas principalmente do tráfico de animais.

Foi aí que começou o monitoramento. Entre as épocas de postura e desova dos quelônios, três ribeirinhos revezam turnos de 8 horas na vigilância dos tabuleiros. Contam os ovos deixados pelas fêmeas, medem a largura do rastro e, quando ocorre a eclosão, contam e protegem filhotes que correm para a água.

Em 2007, eram monitorados apenas sete tabuleiros. Por pedido dos próprios ribeirinhos, este ano o número chegou a 12. De lá até agora, os monitores contaram mais de 250 mil tartaruguinhas e tracajás quebrando a casca do ovo e fugindo para a água. Os ribeirinhos estão empolgados e querem manejar também jacarés, outro bicho que não falta por lá. E pensam também nos peixes ornamentais, produto que faz parte da pauta de exportação do Estado do Amazonas.

No Programa, há monitores de fauna, como o Raimundo, e gente que cuida dos tabuleiros. Há também entrevistador , que dedicam um dia por semana para conversar com outros ribeirinhos, e anotar as informações, sobre bichos e produtos consumidos, como animais caçados ou se fizeram ou compraram farinha. E há também pessoas que passam o dia com um olho das atividades diárias, para contar e descrever os barcos que entram e saem da reserva – estes já ganharam até binóculos para ajudar no trabalho.

– Em troca, nós damos uma pequena ajuda aos monitores, para compensar o tempo dedicado, – destaca Sinomar.

Do Médio Juruá, o Probuc já foi exportado para o Rio Negro, onde foi implantado no Parque Estadual Setor Norte, e na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã, no Baixo Amazonas.

Clique para ampliar o mapa (foto: SDS/AM)
Clique para ampliar o mapa (foto: SDS/AM)

Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari

A RDS Uacari é vizinha da Reserva Extrativista (Resex) do Médio Juruá, em uma região de forte atuação de missionários católicos, que levaram para lá programas de Educação de Base. E graças a estes programas, o povo do Médio Juruá é bem organizado e sabe enxergar nos destinos traçados pelos burocratas oportunidades para melhorar de vida.

Com base na experiência da Resex, Raimundo entendeu que uma reserva poderia assegurar aos ribeirinhos do entorno o uso dos recursos naturais e livrá-los das ameaças de donos de terras que costumam aparecer na Amazônia de uma hora para outra. Mas achava que os vizinhos da Resex tinham muitas limitações quando precisavam pescar ou caçar. A solução veio de uma experiência que começara alguns anos antes, a alguns quilômetros ao Norte, em Mamirauá, idealizada por Márcio Ayres. Mamirauá foi criada como Estação Ecológica em 1990, mas transformada em uma RDS seis anos depois. Lá, moradores já manejavam madeira e Pirarucu, e colaboravam com cientistas para descobrir como matar jacarés, sem ameaçar o bicho de extinção. Surgiu a ideia das comunidades do Médio Juruá de criar uma RDS na região.

Depois de muitas assembleias, Antônio Raimundo Aquino recebeu a missão de entregar a proposta de criação da reserva pessoalmente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Em 2005, o governo do estado criou, durante a Semana do Meio Ambiente, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari, numa área de 632.949 hectares, cortados pelo Rio Juruá, onde são encontradas florestas de terra firme, várzeas e campinas.

Raimundo conta que a criação da RDS trouxe dois benefícios importantes para as 29 comunidades da Uacari, educação e novas alternativas para geração de renda. Ele, por exemplo, só conseguiu se formar no Ensino Médio no ano passado, na mesma turma que a filha mais nova. No tempo em que ele era criança, a escola só ia até a quarta-série, com aulas dadas por professores leitos. Hoje, os professores são formados em faculdade e moram nas comunidades.

– A gente vivia de cortar seringa para o patrão. Nem dava tempo de fazer farinha. Tinha que vender a seringa para poder comprar farinha. Agora, a gente vende a farinha, vende a copaíba, vende a andiroba, vende a seringa. E não depende mais do patrão – compara o ribeirinho.

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