Reportagens

Vaidade fora dos limites da lei

Ação da Polícia Federal traz à tona tamanho do mercado de animais silvestres no Brasil e países europeus. Criadores indicam cativeiro como uma das armas no combate ao crime.

Redação ((o))eco ·
12 de março de 2009 · 15 anos atrás

A Polícia Federal (PF) prendeu ontem 72 pessoas acusadas de integrar uma quadrilha ligada ao tráfico de animais silvestres. A ação, deflagrada após mais um ano de investigações, ocorreu em nove estados brasileiros e trouxe à tona uma das chagas da conservação: a existência de um mercado cada vez maior para este tipo de “produto”. Segundo a PF, o grupo capturava e vendia 500 mil espécimes silvestres ao ano, a maioria em extinção, para países como República Tcheca, Portugal e Suíça, além do próprio Brasil. Por trás das cifras escandalosas, pairam questões polêmicas e ainda sem respostas. Por que ainda existe demanda por esse tipo de animal, quais são as armas efetivas contra o tráfico e a criação legalizada em cativeiro como arma ao mercado negro são algumas delas.

Para Dener Giovanini, fundador e coordenador da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), o interesse em ter espécies não-domésticas em casa tem raízes fincadas no início da colonização brasileira. “Essa [a criação de espécies silvestres] é uma questão muito pessoal, mas também um traço cultural do brasileiro que teve origem há 500 anos, quando colonizadores começaram a incorporar hábitos indígenas, inclusive no que se refere à criação de animais domésticos. Só que os animais domésticos dos índios eram araras!”, diz.

Por trás deste “traço cultural”, pesam também outros sentimentos humanos, como vaidade, curiosidade, desejo de status e falta de conhecimento. O resultado é a movimentação de 1 bilhão de dólares por ano no mercado negro de animais silvestres. E isso só para aves, que representam grande parcela do total de espécies comercializadas clandestinamente.

Criação legalizada é legal?

Segundo o biólogo Tiago de Oliveira Lima, presidente da União Nacional das Entidades de Criadores e de Comerciantes de Animais da Fauna Nativa, Exótica e Doméstica (Unifauna), a melhor arma no combate ao tráfico é a criação em cativeiro legalizada. Isso porque, de acordo com ele, para cada animal legalizado são preservados dez que morreriam em mãos de traficantes. Seu argumento é baseado em levantamentos que indicam que somente uma em cada dez aves sobrevive ao tráfico e 12 milhões delas morrem por ano, vítimas do comércio clandestino.

Lima também defende que o comércio legal regulamenta a prática, apresenta-se como solução para animais que tiveram de ser retirados de suas áreas de ocorrência – como em casos de construções de hidrelétricas – e ainda gera conhecimento científico “impossível de analisar” em animais soltos na natureza. “Consideramos, sim, as condições de cativeiro como variantes, mas o comportamento das espécies nestas situações não é 100% diferente do natural”, argumenta.

Apesar dos pontos positivos apresentados por ele, há entidades que lutam veementemente contra a prática. A Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla em inglês) é uma delas. Segundo a veterinária Ana Nira Junqueira, consultora da WSPA no Brasil, a prática fere as “cinco liberdades” que são de direito dos animais silvestres, conseguidas quando o animal está livre de fome e sede, livre de desconforto, de lesões e doenças, de medo e estresse e livre para manifestar seu comportamento natural.

“Em cativeiro, o animal não tem condições de escolher seu parceiro, geralmente tem uma alimentação inadequada, o que provoca deficiências nutricionais, e está suscetível a ser contaminado ou transmitir doenças para as quais ainda não há vacinas”, diz Ana Nira. Além disso, a veterinária argumenta que ainda não existe medicina veterinária especializada suficiente para atender à demanda dos animais silvestres e que as pessoas não estão preparadas para lidar com eles nas residências.

Caso a criação legalizada seja incentivada como prática de combate ao comércio ilegal, pesa ainda o fato de que muito provavelmente o Ibama não terá condições de fiscalizar este comércio, argumenta Nira. “Não condenamos a criação em cativeiro. Em certos casos ela é importante, como quando os animais são muito antropizados (que ficaram em contato prolongado com humanos e não sabem mais viver em ambiente selvagem). O que não defendemos é que se crie uma fábrica de animas silvestres”, diz.

Para a WSPA, a melhor alternativa ao tráfico de animais silvestres é a educação e a mudança de hábitos na sociedade. “A justificativa que de o mercado existe por uma questão cultural não é válida. Nós não usamos as mesmas roupas de dez anos atrás, não comemos as mesmas coisas, estamos sempre mudando. Precisamos ter em nossa consciência que: ou mudamos ou morremos com eles (vida silvestre)”, diz a veterinária.

Encarar o problema de frente

Controversa ou não, a criação legalizada de animais silvestres como arma de combate ao tráfico deve ser enfrentada, diz Dener Giovanini, do Renctas. “Temos que ser mais pragmáticos. Claro que tem uma questão ideológica e emocional quando se fala de animais, mas o comércio legalizado é uma das armas para se combater o tráfico. Defendo que haja esta criação comercial para atender à demanda e para que parem de tirar os animais da natureza”, diz.

Segundo ele, esta “arma” deve vir associada a outras, como educação ambiental e fortalecimento da lei e da fiscalização. O que não pode acontecer é o governo fingir que a situação não existe. “Hoje a regulamentação da prática está espalhada em várias portarias e decretos. Esta falta de clareza só prejudica. É preciso que o governo se empenhe, crie financiamentos para a prática, que é muito cara”, defende.

Para Giovanini, é claro que a situação ideal seria a de que os animais silvestres fossem mantidos na natureza. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a situação aconteça “Isso ainda é uma utopia e utopias existem para serem perseguidas, mas não podemos fugir da realidade”, diz.

Leia também

Notícias
25 de abril de 2024

Brasil registra o maior número de conflitos no campo desde 1985, diz CPT

Segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra, país teve 2.203 conflitos em 2023, batendo recorde de 2020; 950 mil pessoas foram afetadas, com 31 assassinatos

Salada Verde
25 de abril de 2024

Acnur anuncia fundo para refugiados climáticos 

Agência da ONU destinará recursos do Fundo para proteger grupos de refugiados do clima. Objetivo é arrecadar US$ 100 milhões de dólares até o final de 2025

Salada Verde
25 de abril de 2024

Deputados mineiros voltam atrás e maioria mantém veto de Zema à expansão de Fechos

Por 40 votos a 21, parlamentares mantém veto do governador, que defende interesses da mineração contra expansão da Estação Ecológica de Fechos, na região metropolitana de BH

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.