Reportagens

Mata de estanho

Considerada modelo, a Floresta Nacional do Jamari (RO) tem desafios bem maiores do que sediar as primeiras concessões florestais. Não faltam minas, garimpeiros e madeireiros.

Andreia Fanzeres ·
26 de outubro de 2007 · 17 anos atrás

Floresta Nacional com cancela e vigilância 24 horas na Amazônia existe sim, quem duvida? É justamente a menina dos olhos do Serviço Florestal Brasileiro: Jamari, em Rondônia. Só que este não é um predicado do governo. É resultado da presença de mineradoras em seu interior. Para entrar lá é preciso se identificar diante de um funcionário da Estanho de Rondônia S/A (Ersa), empresa comprada em 2005 pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que por sua vez herdou de uma outra mineradora, a Companhia Estanífera do Brasil (Cesbra), minas de cassiterita bem no meio da unidade de conservação.

Mas nem o Ibama ou o Instituto Chico Mendes estão interessados em tirá-la de lá. Pelo fato de a unidade de conservação ter sido decretada 20 anos depois da instalação de mineradoras na região, exatamente para evitar que tudo fosse destruído por uma corrida pelo estanho, a solução foi adequar a exploração minerária à gestão da floresta nacional. Tanto é que no plano de manejo da unidade, aprovado há dois anos, fica definido que a mineração merece 60 mil dos 220 mil hectares sob proteção.

A abertura de minas de cassiterita na área onde hoje é a Floresta Nacional do Jamari começou nos anos 50 por garimpeiros e na década seguinte com lavras mecanizadas. Elas se concentravam numa região conhecida como Santa Bárbara, englobada em 1974 pelo grupo Brascan, que em 1980 adquiriu a Cesbra. Até 2005, a empresa havia aberto pelo menos 12 frentes de lavra. Para conseguir trabalhar naquelas minas, montou infra-estrutura digna de uma pequena cidade no meio da mata. Escola, igreja, clube, vila para os funcionários, linhões de energia e estradas de 200 quilômetros que cortam a floresta foram usados com muita intensidade no passado, quando há registros de que tenham vivido ali cerca de quatro mil pessoas.

Graças a uma doação de terras arrecadadas pelo Incra, em 1984 o antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) criou a Floresta Nacional do Jamari, nos atuais municípios de Itapuã do Oeste e Cujubim, abraçando uma imensa área de floresta intocada, as minas e a vila da mineradora. A produção de cassiterita decaiu, algumas empresas foram embora e hoje, além dos sete servidores do Ibama (ainda não nomeados para o Instituto Chico Mendes) que freqüentam a sede da floresta nacional, outros 130 funcionários da Ersa também moram dentro da unidade de conservação.

Paisagem alterada

Casas ocupadas dividem espaço com instalações desativadas, onde a vegetação começa a retomar seu lugar. Mas a floresta, ainda vigorosa na maior parte da área, desaparece quando se aproximam as gigantescas clareiras abertas para mineração, montanhas de terra e de sucata que, segundo o Ibama, já deviam ter sido retirados há muito tempo de lá. Visitar essas zonas em pleno funcionamento é um choque. Mas, no passado, os impactos eram bem maiores. “Hoje em dia tiramos apenas cassiterita de aluvião, sem mais o uso de explosivos”, diz Flávio Mourão, diretor da Ersa. Segundo ele, essa mudança de procedimento não ocorreu por pressões ambientais. “Não é mais necessário usar explosivos em decorrência da redução da quantidade de minério”, afirmou. Mas ele preferiu escapar dos números. Não informou à reportagem quanto de cassiterita é explorado hoje em relação aos anos anteriores. Mas dados contidos no site oficial da Ersa dão conta de que existem ainda jazidas de 25.898 toneladas e recursos de 54.066 toneladas de estanho.

Hoje a Ersa é a única mineradora autorizada a atuar dentro da floresta. Até 1996, a Mineração Céu Azul era responsável pelos setores Cachoeirinha, Queimado e Olhos d’água, no sul da floresta nacional, responsáveis por uma produção de cerca de 100 toneladas de minério por mês. Mas depois da saída da empresa, ficou tudo abandonado. Não à toa, ainda hoje essa região atrai garimpeiros invasores, que abrem picadas na mata e provocam incêndios florestais. Lamentavelmente, nenhuma área destruída pela mineradora foi recuperada. Estima-se que pelo menos 600 hectares estejam degradados.

Se recentemente o governo o Serviço Florestal Brasileiro enxergou na Floresta Nacional do Jamari um importante potencial para realização de manejo sustentável dos recursos naturais, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) também percebeu que a área, muito antes de ser legalmente protegida, podia render muitíssimo. Por isso concedeu alvarás de pesquisa e exploração mineral em estimados 88,3% da atual floresta nacional. São títulos minerários que cobrem praticamente toda unidade de conservação, mas que, segundo o Ibama, só vão se transformar em novas minas se tiverem licença ambiental emitida pelo instituto. E respeitando o zoneamento próprio da mineração estabelecido no plano de manejo da unidade.

De acordo com este documento, as atividades de mineração atuais ocupam uma área de 2.388 hectares, sendo que 10.843 hectares áreas que devem ser recuperadas. Mas, pelo menos até 2005, o processo de recuperação de áreas degradadas era “bastante modesto, incipiente, ou mesmo inexistente em muitos locais”, como diz o plano de manejo. Do passivo herdado pela Ersa, um acordo definiu que a antiga Cesbra continuaria responsável pelos trabalhos de recuperação ambiental. “Nós estamos cumprindo todas as condicionantes da licença passo a passo”, garante Mourão. Mas novamente ele não quis dizer que áreas precisam ser recuperadas, e o que já foi efetivamente cumprido.

A diretoria de licenciamento ambiental do Ibama também preferiu não se pronunciar porque ainda não liberou a renovação da licença da Ersa, solicitada há dois anos. Segundo o órgão, como a mineradora fez o pedido de renovação dentro do prazo legal, suas atividades são consideradas regularizadas, mesmo sem a nova licença emitida. Um parecer favorável dos técnicos do Ibama até já saiu, mas segundo o instituto não pode ser divulgado porque precisou ser encaminhado para o Instituto Chico Mendes. E aí a burocracia aumentou. Como órgão gestor das unidades de conservação, tem também poderes para modificar alguma condicionante e só depois de avaliar o parecer da licença, esta poderá ser renovada.

Prioridades

Apesar de conter tantas atividades e infra-estrutura instalada dentro de seus limites a Floresta Nacional do Jamari não recebe um centavo de compensação ambiental. “Tudo que existe foi construído antes da criação da floresta nacional, com licenciamento da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sedam)”, explica Angela Calixto, chefe da unidade de conservação. Agora ela corre contra o tempo para tentar um licenciamento corretivo. “Já enviamos ofícios à BrasilTelecom, Embratel, Dnit, Eletronorte e Ceron (Centrais Elétricas de Rondônia) pedindo dados da empresa, número do processo de licenciamento, etc. Isso já faz dois anos, e ainda não recebemos respostas”, diz ela, que tenta administrar a floresta nacional mais falada no momento com parcos recursos financeiros.

Como na maioria das unidades de conservação, a grana é curta. Segundo Angela, este ano a Floresta Nacional do Jamari recebeu apenas 48 mil reais para cobrir suas despesas anuais, incluindo suprimentos, combustível, manutenção. Mas a expectativa é de que, assim que as concessões florestais nas três unidades de manejo demarcadas saiam, os recursos para a gestão da área sejam mais robustos. Diz o edital de licitação que 40% do que for arrecadado com as concessões será remetido ao Instituto Chico Mendes. O que os analistas da floresta nacional querem saber é quanto efetivamente o instituto vai destinar à Jamari.

De toda forma, chegando mais recursos, os servidores da floresta nacional já sabem o que fazer de imediato. As prioridades são muitas, a começar pela instalação de um posto avançado em Cujubim, mais de 100 quilômetros distante da sede da unidade. A região é uma das favoritas para grileiros e furto de madeira. “Precisamos de mais recursos para fiscalização, ainda mais porque está rolando entre a população boatos de ‘privatização’ da floresta. Agora mesmo é que eles vão querer entrar”, comentou Carlos Renato de Azevedo, analista ambiental que há cinco anos trabalha na floresta nacional.

Outras metas são promover mais pesquisas científicas na unidade de conservação, organizar a visitação de escolas para atividades de educação ambiental e a entrada de extrativistas. São atividades essenciais para que a floresta nacional cumpra realmente sua função, especialmente agora que ela tem sido considerada modelo para o país, com regularização fundiária, zoneamento e conselho consultivo prontinhos. Que aprenda com o exemplo da mineração, para não permitir que as concessões florestais deixem tantas marcas.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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