Reportagens

Reserva de desenvolvimento de caça

Ciente das ilegalidades, fiscalização ambiental do Amazonas não impede festival de caça promovido por políticos e empresários em reserva de desenvolvimento sustentável.

Karina Miotto ·
26 de setembro de 2007 · 17 anos atrás

Há mais de 20 anos, a caça esportiva acontece onde hoje está estabelecida a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Piagaçu-Purus, a 223 quilômetros de Manaus (AM). A área, de 793.618 hectares, fica entre os municípios Tapauá, Beruri e Anori e em vez de servir às comunidades tradicionais beneficiadas pela demarcação, é um dos locais favoritos de barcos luxuosos lotados de políticos endinheirados, incluindo deputados, e famílias abastadas, especialmente durante feriados prolongados. Tudo na total ilegalidade.

O Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam), responsável pela fiscalização da reserva, está ciente da prática, mas se sente de mãos atadas. “Recebi a denúncia de que haveria caça na RDS Piagaçu-Purus uma semana antes do feriado de sete de setembro. Foi muito em cima da hora, meu corpo técnico já estava em campo para outras ações. Tenho um cronograma para seguir”, afirma Wanderleia Holanda Salgado do Nascimento, gerente de fiscalização do instituto. Mas esse “em cima da hora” é relativo. Há décadas é sabido que, durante este feriado, barcos aportam na reserva para uma boa caçada. No entanto, não havia ninguém do Ipaam lá para pegar os transgressores em flagrante. Aliás, desde 2003, data da criação da reserva, nunca ninguém foi autuado.

A atração principal da caça dentro da reserva de desenvolvimento sustentável é uma espécie migratória de pato-do-mato (Cairina moschata), que visita esse pedaço da Amazônia entre os meses de setembro e novembro. Ele se refugia principalmente na região dos lagos Ayapuá, Caua e Itapuru, que ficam nos municípios de Beruri e Anori. Além de ser presa fácil, existe em abundância nesta época. E essas não são as duas únicas razões que levam à sua caça. “As pessoas matam estes patos por diversão, porque não precisam caçar para sobreviver”, explica Nonata Lopes, gerente de controle de pesca do Ipaam. Talvez por isso a ave seja apenas o prato principal. Quem sai para caçar, pega o que vê pela frente: paca, veado, capivara, tartaruga, porco-do-mato e diversos outros animais.

A reserva Piagaçu-Purus possui mais de 200 lagos e uma das variedades de peixes mais ricas da região. Contém todas as espécies conhecidas de mamíferos aquáticos da Amazônia, entre as quais o boto vermelho, boto-tucuxi, peixe-boi, lontra e ariranha. Abriga também quelônios, jacarés, pelo menos 13 espécies de primatas e 40 de aves. Entre as residentes e as migratórias, é possível encontrar maçaricos, garças, biguás, socós-boi, jaçanãs, saracuras, gaivotas, marrecas e patos, com destaque para a águia pescadora, que chega do hemisfério norte, e para o gavião caramujeiro, vindo do sul do país.

Sem controle

Sair para caçar como forma de diversão é um hábito comum na Amazônia, mas praticamente não tem controle, inclusive em unidades de conservação. “Isso acontece há muito tempo, todo mundo sabe e nunca ninguém fez nada”, afirma o pesquisador Eduardo von Mühlen, coordenador do programa de monitoramento e uso de fauna do Instituto Piagaçu, ONG que atua na região desde 2004.

De acordo com o engenheiro de pesca José Gurgel Rabello Neto, também do Instituto Piagaçu, as pessoas têm uma relação com a natureza de aproveitar a fartura de locais afastados e o conhecimento de comunitários “para extrair as melhores riquezas”. “Como é mais difícil juntar a família, muita gente caça em feriados e volta com carga gostosa para passar boas semanas preparando sarapatéis, pirarucu de casaca, cutia no leite da castanha, tambaqui na brasa, paca assada, veado ensopado, picadinho de peixe-boi e por aí vai. No tempo em que eu fazia o segundo grau, tinha amigos ricos que chamavam vez por outra para ir nestes passeios. Era sorvete, uísque, dominó, pescaria e caça…por uma semana”, recorda-se. Ele atesta ainda que já viu muita gente crescer comendo tartarugas e tracajás. “Hoje acredito que este tipo de coisa deva ser exclusiva para os ribeirinhos”, opina o engenheiro.

O Ipaam admite que não tem recursos humanos suficientes para exercer a fiscalização na área. “Não temos como fiscalizar os 62 municípios do Amazonas ao mesmo tempo”, reclama Wanderleia, cuja equipe de fiscalização de todo estado, segundo ela, é composta por apenas nove pessoas. Para complicar a situação, a tripulação de barcos luxuosos conta eventualmente com a ajuda dos próprios ribeirinhos, que vendem informação e conhecimento em troca de favores em cidades e alguns poucos trocados. No entanto, de acordo com o instituto, este tipo de atitude é repudiada pela maioria dos quatro mil habitantes, que vivem em 56 comunidades espalhadas pela reserva. “Noventa por cento dos ribeirinhos é contra essa prática”, garante Rabello Neto.

Instituições de pesquisa interessadas em contribuir com o manejo da área também reclamam dos intrusos. “Fica muito difícil implementar programas de monitoramento do uso de recursos com as populações locais quando elas vêem pessoas de fora chegando em sua área e fazendo o que bem entendem sem nenhum tipo de restrição. A confiabilidade entre as partes – gestores, cientistas, comunitários e usuários – fica comprometida. Se continuar assim, dificilmente os programas de uso sustentável dos recursos terão sucesso”, afirma Eduardo Venticinque, vice-presidente do Instituto Piagaçu, que também é responsável pela elaboração do plano de manejo, previsto para sair no primeiro semestre de 2008.

Wanderleia, que admitiu a falha em não fiscalizar a reserva em época crítica, promete que em breve seus agentes aportarão na Piagaçu-Purus. “Não vou falar a data, mas iremos até lá. Ano que vem vamos atuar em épocas críticas porque teremos tempo de nos programar para isso. E não vamos deixar passar, como aconteceu neste feriado”, diz. Os resultados da próxima caçada dirão.

* Karina Miotto é jornalista em Manaus e autora do blog Eco-Repórter-Eco

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