Reportagens

Uma aventura nos Andes peruanos

Passou a hora do Peru proteger a Cordilheira Huayhuash e sua cadeia de montanhas e lagos. Lá, repórter de O Eco andou cerca de 200 quilômetros e foi além dos 5 mil metros.

Redação ((o))eco ·
6 de setembro de 2008 · 16 anos atrás

O rádio da van é generoso: despeja uma seqüência de sucessos norte-americanos dos anos 1980. Tudo dublado em espanhol. Pela janela, o panorama semi-árido vai dando espaço a cumes cada vez mais elevados. Estamos no Peru, na estrada que liga a capital Cuzco a uma sonhada região dos Andes.

O Peru é pouco maior que o estado brasileiro do Pará, mas esbanja atrativos naturais e culturais. Nosso vizinho sul-americano não guarda apenas os tradicionais sítios de Machu Picchu, linhas de Nazca, o Lago Titicaca ou Cuzco, antiga capital do Império Inca. Encravada no Departamento de Ancash, a Cordilheira Huayhuash é uma jóia andina, cravejada de montanhas, vales e lagos majestosos. A reportagem de O Eco acompanhou um grupo de moradores de Brasília (DF) durante dez dias a pé e quase duas centenas de quilômetros pela região, em um dos mais duros e belos circuitos de montanhismo do globo.

Depois de vencer os 400 quilômetros entre a capital peruana de Lima e Huaraz (mapa abaixo), onde vivem cerca de 60 mil pessoas, colocamos a sola da bota nos Andes, que cortam o continente de Sul a Norte. Antes de partir para a grande jornada, foi necessário adaptar o corpo ao ar rarefeito das montanhas. Além de alguns dias na barulhenta cidade, a três mil metros de altitude, visitamos a esverdeada Laguna Churup (4.450 m), dentro do Parque Nacional Huascarán. O ingresso custou 5 Nuevos Soles (moeda peruana), menos de R$ 3,00.

A aclimatação pode ser rápida e fácil para alguns ou lenta e dolorosa, ou até impossível, para outros. A má adaptação traz sintomas como dor de cabeça, tontura, enjôo e vômito. O problema é tão comum que as farmácias regionais vendem suspeitos comprimidos contra o mal de altitude (soroche) e até pequenos cilindros com oxigênio. A receita tradicional inclui boa alimentação, muita água e chá de folhas de coca. Se nada disso surtir efeito, desça!

Tarefa cumprida, entramos na apertada van que nos levou até LLamac. O pequenino povoado é alcançado após cinco horas de asfalto e estradas de terra perigosas e poeirentas, cruzando uma região semi-árida. Lá aconteceu o primeiro e estranho acampamento – no campo de futebol local. Estrangeiros de roupas coloridas atraem a criançada, em todo o caminho, sempre em busca de “caramelos” (doces). Preocupados com seus dentes, compramos caixas de lápis coloridos como presente.

O dia seguinte revelou a rotina da expedição: acordar bem cedo, com frio e, não raro, com barracas congeladas, tomar café, levantar acampamento e pé na estrada. O peso maior seguiu no lombo de velozes mulas guiadas por arrieros, restando menos de dez quilos para nossas costas. As caminhadas diárias se estenderam por 15 quilômetros e sete horas, em média. O roteiro vai de um vale a outro, cruzando pasos (ponto mais baixo entre montanhas) na sua maioria com mais de 4,7 mil metros de altitude. O Pico da Neblina, topo do Brasil, tem 2.994 metros.

Este gráfico mostra as altitudes percorridas na expedição, com exceção da escalada do Diablo Mudo (box abaixo).

Nas trilhas das montanhas

Batatas e pedras

O Peru tem cerca de 350 tipos de papas (batatas; a “inglesa” também é deles), variando em tamanho, cor, sabor e altitude de plantio, além de usar vários outros cereais, como milho, trigo e quínua. A escassez andina de terras planas leva os cultivos para as bordas montanhosas. Os vales, menos abrigados da neve e das geadas, são reservados aos rebanhos. O modelo de produção interiorano é quase sempre comunitário, onde a população decide pelas quantidades e locais das culturas.


Com raros bosques de
quenuales (árvore de casca alaranjada), as matérias-primas básicas para as construções locais são pedras, totora (junco) e outros vegetais. Casas e cercados para rebanhos são erguidos dessa maneira, bem como os canais que conduzem água por toda a região. Exatamente como faziam os Incas e outros povos que lá viveram. Infelizmente, ruínas ou fazendas abandonadas e próximas às trilhas turísticas vêm se tornando banheiros ou depósitos de lixo. 

 

Mapa com a trilha e pontos de acampamento. (Fonte: Trilhas e Cia)

A trilha de Llamac a Cuartelwain acompanha trechos de estradas abertas há anos por mineradoras estrangeiras de ouro, prata e outros minerais. No povoado de Pocpa, um dos primeiros “postos de pedágio” do circuito. As taxas cobradas nos vilarejos, dependendo do trajeto, podem somar até 150 Nuevos Soles, quase R$ 85,00. A ascensão foi leve, ajudando no restante da aclimatação. Antes do fim da tarde, chuva e neve atingiram o acampamento, já a 4.150 m. Hora de escapulir para a barraca. Em Huayhuash, quem manda é a natureza.

O desafio seguinte foi penoso: ultrapassar dois pasos no mesmo dia, Cacanpunta e Carhuac. Ambos têm mais de 4.600 m. Chegar a essa área de Huayhuash traz a forte sensação de se ter ultrapassado uma barreira, rumo ao coração da cordilheira. Dali em diante, não há traço de qualquer estrada ou urbanismo. A dança de luzes e sombras nas encostas e vales é hipnótica. A caminhada severa foi recompensada pela beleza das águas gélidas e cristalinas da Laguna Carhuacocha. Bem à frente do acampamento, gigantes nevados como o Yerupajá (6.617 m), Jirishanca (6.094 m) e Siulá Grande (6.344 m).

A partir daquele ponto, a rota segue pelo vale, se aproxima da esquisita Laguna Gangrajanca até topar com o paso Siulá, a exaustivos 4.850 m. Durante a subida íngreme e lenta, não esqueça de uma olhadela para trás. O panorama é dos mais estonteantes da travessia, com azuladas lagunas escoltadas por imponentes montanhas. Pouco depois de encontrar o acampamento Huayhuash, uma forte nevasca cobriu tudo de branco. Inclusive os ponchos dos vigias armados.

O local é próximo a uma região de plantios de coca e de tráfico de cocaína. Antes dos seguranças e suas espingardas, havia roubos e assaltos a turistas. Esse e outros poucos campings têm banheiros rústicos – um buraco no chão coberto por uma casinha de madeira ou lona. Caso contrário, siga para trás da próxima moita ou pedra com sua pazinha. E de preferência, bem longe da água.

Diablo Mudo

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Acordamos à 1h30min de uma madrugada congelante. Engolimos o café da manhã e partimos para a escalada do nevado Diablo Mudo. Foram três horas de
moraina (pedra, cascalho e areia), com lanternas na cabeça, até o início do glacial. Calçamos sapatos especiais e seguimos avançando sobre o branco da montanha. O ritmo era lento e cadenciado, sob o som inconfundível dos dentes afiados dos crampons rompendo a neve dura. Mais três horas foram necessárias para pisarmos nos 5,3 mil metros do cume. No topo, avistamos das montanhas gigantes à transpiração da distante floresta amazônica. Restava a descida de muitos quilômetros até o acampamento. Ao todo, o trajeto exigiu 10h30min de caminhada.

Rumo ao paso Portachuelo (4.785 m), o clima ficou novamente de mau humor e despejou neve e muito frio. Nesses casos, a dica é sempre manter a calma e administrar a energia para chegar bem à próxima parada, o acampamento Cuyoc. A trilha margeia a Laguna Viconga pela direita, onde há uma pequena hidrelétrica. Na área se avistam rebanhos de lhamas e alpacas, animais nativos cada vez mais substituídos por ovelhas e bois.

Apesar do cansaço acumulado, o dia foi especialmente agradável. Afinal, não é sempre que se pode mergulhar em uma aconchegante piscina de água quente, bem no meio dos Andes. Um banho de verdade já era mais do que necessário, e as termas de Atuscancha (4.365 m) foram perfeitas.

Com cheiro renovado, sem espantar ninguém, o guia nos conduziu em direção ao paso mais alto do roteiro: a Punta Cuyoc e seus 5 mil metros de altitude. Vencido o árduo desafio, seguimos pelo vale até o acampamento de Huanacpatay, rico em nascentes e cortado por pequenos rios. Em vários pontos do circuito há lixo. Lá não foi diferente, apenas em maior quantidade. As comunidades cobram “taxas turísticas” com a desculpa de recolher resíduos e organizar banheiros. Coisa rara.

“Além disso, vários produtores estão deixando de cultivar a terra ou de criar animais pelo dinheiro das taxas de visitação”, revelou Victoriano Bacilio Huaranga, vice-presidente da Casa de Guias de Huaraz. A entidade é ligada à Federação Internacional de Associações de Guias de Montanha e promove cursos anuais de formação e de atualização, de línguas e viagens nacionais e internacionais.

Do outro lado da cordilheira

Depois de cruzar a Punta Cuyoc, partimos para o segundo grande trecho da travessia, de volta à seção oeste da cordilheira. Nossas pernas exaustas nos carregam até o povoado de Huayllapa, onde há o único telefone para contato com o mundo exterior. Alô Brasil! Os habitantes de lá têm o estranho hábito de presentear as margens do Rio Huaylloma com todo o lixo que encontram.

Um toque no vazio

Menos de cinco mil pessoas percorrem o Circuito Huayhuash a cada temporada, entre maio e setembro – raros brasileiros e muitos israelenses. Pode parecer pouco, mas até 1985 o número era irrisório. Naquele ano, a dupla de jovens ingleses Joe Simpson e Simon Yates entraria para a história ao escalar a até então imbatível face oeste do Siulá Grande (6.344 m) e por protagonizar uma das mais arrepiantes histórias de sobrevivência já registradas em montanha. Na descida, Simpson cai, quebra a perna e fica dependurado pela corda dentro de uma greta. Na outra ponta, Yates segura o amigo o quanto pode. Sem forças e deslizando encosta abaixo, usa seu canivete para romper a corda e lançar o companheiro no abismo. Dando Simpson como morto, retorna ao acampamento. No entanto, Simpson sobrevive, escapa da greta e se arrasta por dias montanha abaixo. A façanha virou livro e filme – Tocando o vazio. Também está na boca de qualquer guia que se preze na região de Huayhuash. A publicação é encontrada em várias livrarias brasileiras.

O trecho é muito exigente, uma gangorra andina. Descemos de 5 mil metros para 3.300 m, ascendendo novamente a 4.750 m para, enfim, cruzarmos a Punta Tapush. Adiante estavam a Laguna Susucocha e o acampamento Uatiac. O local é base para a escalada do nevado Diablo Mudo. Ele e o León Dormido são consideradas montanhas “fáceis” de se subir na região. Ambas têm mais de 5  mil metros de altitude e coroas nevadas. A escalada acontece na madrugada seguinte (box acima).

Após a “pedreira” que foi subir e descer aquela montanha e percorrer quilômetros até o acampamento, a visão mágica da Laguna Jahuacocha foi reconfortante. Aos pés da outra face dos nevados Yerupajá, Siulá, Rondoy e Ninaschanca, o espelho d´água atrai diversas espécies de patos, marrecos e outras aves selvagens. O local também abriga deliciosas trutas, prontamente pescadas para o jantar. A paz era quase total, não fosse um rápido e leve tremor de terra que atingiu o acampamento àquela tarde.

Após um merecido dia de descanso, o circuito Huayhuash se aproxima do fim. O último trecho de caminhada cruza bosques de quenuales e encostas até o paso Pampa Llamac (4.300 m). Dali em diante, a descida íngreme conduz lentamente até nosso ponto de partida de dias atrás, o povoado de Llamac. Cinco horas nos separavam da cidade de Huaraz e de um ótimo banho quente. Valeu a pena esperar.

Reserva sem proteção

Zona reservada Huayhuash. (Fonte: Inrena)

A Cordilheira Huayhuash é uma “zona reservada” com 67,5 mil hectares, decretada pelo governo peruano em dezembro de 2002. Na prática, pode virar um parque nacional ou outro tipo de área protegida, ou simplesmente ser esquecida pelos planos oficiais. Hoje é explorada comercialmente por dezenas de operadoras de turismo e pelos campesinos.

“Um parque nacional manteria melhor a região, controlando a cobrança de taxas, ajudando na fiscalização, gestão do lixo e preservação da cordilheira. Do jeito que está, seria melhor fechar alguns trechos por algum tempo, para que se recuperem das agressões”, avalia Victorino Huaranga, da Casa de Guias de Huaraz.

Este ano o Peru ganhou seu Ministério do Meio Ambiente, para onde está migrando o Instituto Nacional de Recursos Naturales (Inrena), mistura peruana de Ibama e Instituto Chico Mendes. Antes, o órgão era vinculado ao Ministério da Agricultura. Os efeitos práticos da medida ainda são uma incógnita.

O país tem 60 áreas com algum tipo de proteção, cobrindo cerca de 15% de seu território.

Serviço

Quem leva – poucas agências brasileiras operam o circuito Huayhuash, mas em Huaraz há dezenas delas, como a Artizon Adventure. A maioria pode ser contatada pela Internet. Os preços variam de US$ 400 a US$ 2 mil por pessoa e incluem ao menos guia, cozinheiro, arriero, barracas, comida, mulas e cavalo reserva (opcional).
Avião – a Taca opera vôos regulares São Paulo – Lima.
Ônibus – o trecho entre Lima e Huaraz é melhor percorrido de ônibus. As empresas Cruz del Sur e Movil Tours oferecem serviço confortável e limpo.
Dormir – a Casa Andina hospeda em Lima e outras cidades peruanas.

Dicas

Equipamentos – o trekking e o montanhismo são esportes relativamente democráticos, mas não é recomendável praticá-los com qualquer equipamento. Esse tipo de erro pode trazer conseqüências sérias, principalmente quando as atividades se estenderem por vários dias e/ou acontecerem em altitude.
Vaselina – evitar bolhas é fundamental. Truques simples incluem usar duas meias, uma fina sob uma grossa. Untar os pés com vaselina também ajuda.
Barraca – nas noites andinas a temperatura cai abaixo de zero. Coloque tudo dentro da barraca para evitar congelamentos. Em casos extremos, coloque pilhas, baterias e semelhantes dentro do saco de dormir. Isso ajuda a manter sua carga.
Água – em alta montanha, para que a água não congele na mangueirinha que sai do reservatório dentro da mochila, basta soprá-la.

Atalhos

Instituto Nacional de Recursos Naturales (Inrena)
Huaraz
South American Explorers
Andean Explorer
Clima no Peru
Casa de Guias

 

Comentários do autor

1. As imagens de Huayhuash são admiráveis, mas as exigências físicas e psicológicas do circuito são intensas. Informe-se e prepare-se muito bem para aventuras como essa.

2. O Peru impressiona pelo combinando de paisagens únicas com culturas ancestrais, do litoral à Amazônia, e também pela organização do turismo. O país é bem estruturado e recebe milhões de visitantes a cada ano, do mundo todo. Vale conferir esta reportagem recente do jornal El Comercio. Também é notável a quantidade de escolas, por mais remota que seja a região. Bons exemplos que o Brasil poderia seguir.

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