Reportagens

Ricos com sede

Relatório do Worldwide Life Fund (WWF) indica que países ricos caminham para um colapso hídrico devido à má gestão da água. As soluções são conhecidas, mas nunca implementadas.

Gustavo Faleiros ·
17 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Nos últimos dez anos, toda a agenda dedicada aos problemas globais de suprimento e poluição da água concentrou-se nas catástrofes que se abatem sobre os países pobres. A cada Fórum Mundial da Água – o último ocorreu este ano na Cidade do México – a ONU publica dados alarmantes sobre o número de pessoas sem acesso a água potável. O levantamento mais recente indica que atualmente 1,1 bilhão de seres humanos sofrem com a escassez de água. Entretanto, às vésperas da Semana Mundial da Água, evento promovido por diversas ONGs em Estocolmo, Suécia, o Worldwide Life Fund (WWF) publicou um relatório que joga luz sobre o outro lado da crise hídrica mundial: a má gestão feita pelos países ricos.

Especialmente na ampliação dos serviços de saneamento, a riqueza das nações foi sempre difundida como fator determinante. Em oposição ao quadro ilustrado por rios recuperados com muito dinheiro como o Tâmisa, no Reino Unido, e o Reno, na Alemanha, cita-se frequentemente rios que cortam megalópoles de países pobres, como o Tietê, em São Paulo, ou o Ganges, em Nova Déli. Mas a WWF identificou em seu estudo “Rich countries, poor water” que nas regiões mais prósperas do mundo os problemas estão ligados exatamente à pujança da atividade econômica. Europa, Estados Unidos, Japão e Austrália compartilham dilemas como exaustão dos recursos hídricos, salinização das reservas, contaminação por insumos agrícolas e altos custos de manutenção da infra-estrutura de captação e tratamento de água.

Os maiores consumidores de água do mundo são os americanos e os canadenses. Por isso mesmo, o principal percalço apontado na América do Norte pela pesquisa do WWF é a super-exploração. De 22 grandes cidades dos Estados Unidos, dez têm problemas de escassez, seis têm suprimento regular, quatro possuem boas condições e apenas uma (Seattle) encontra-se em posição excelente. Já no Canadá, entre 1994 e 1999, um quarto dos munícipios sofreu com racionamento. Para piorar a situação, a qualidade dos recursos está em franco declínio. Fertilizantes carregados pelo rio Mississipi já poluem o Golfo do México, onde há uma chamada “zona morta”. Por outro lado, as fontes de água limpa estão sendo devastadas. Na Califórnia, por exemplo, 90% das áreas úmidas deram lugar a empreendimentos imobiliários.

Na Europa, os autores da pesquisa reconhecem avanços feitos na despoluição do Reno desde os anos 80 e também na gestão compartilhada da bacia do Danúbio, que abrange 18 nações. Contudo eles indicam que o continente será um dos que mais sofrerá as consequências das mudanças climáticas e por isso seria preciso atentar para o uso insustável da água em alguns países. Há um grande destaque para a situação da costa do Mediterrâneo. Lá, o imenso fluxo de turistas no verão, além de uma agricultura baseada na irrigação está empurrando nações para um colapso hídrico. Principalmente a Espanha é apontada como um mau exemplo de gestão, onde a irrigação foi sempre subsidiada e a solução para escassez foi a busca por novas fontes.

Mudanças climáticas também podem estar por trás do mau gerenciamento que a Austrália vem fazendo de seus recursos hídricos. O sudoeste australiano teve uma queda de 15% de sua pluviosidade deste 1970 e por isso as autoridade passaram a buscar água em poços artesianos. No entanto, a exploração foi tão acelerada que já se observa a escassez dos aquíferos. A cidade de Perth, a quarta maior da Austrália, se viu obrigada a investir em uma planta de 260 milhões de dólares para dessalinizar água trazida do mar. Outro resultado do uso intensivo, aponta o relatório, é o início de uma série de conflitos entre autoridades locais e usuários. “A queda do nível das águas subterrâneas levou a um conflito pois autoridades tentam impor limites a outorgas de uso já concedidas ou prometidas”, relatam os autores.

Mas a questão da água não é apenas local ou nacional, alerta o relatório. Em se tratando de nações ricas, a perspectiva global também tem que entrar na conta. Usando o conceito de água virtual (clique aqui para ver o quadro), que calcula o montante de recursos hídricos utilizado na produção de alimentos e produtos manufaturados, observa-se que o impacto de países de primeiro-mundo transcende as suas fronteiras físicas. O Japão, por exemplo, com a importação de commodities agrícolas, obtem no exterior 65%de seus 1,1 mil metros cúbicos per capita de água .

As soluções, diz o relatório, já estão dadas, a questão é deixar o campo da retórica e partir para a ação. Já existem, na opinião dos autores, três acordos internacionais bastante importantes sobre recursos hídricos que necessitam ser implementados: a Convenção de Ramsar de 1971, que lida com a proteção de nascentes e área úmidas, o acordo da ONU para rios internacionais de 1997, para a proteção de cursos da água transfronteiriços, e os resultados da Comissão Mundial de Barragens de 2000, que apontam um limite na construção de grandes projetos de barramento.

Além destes acordos, o documento do WWF defende uma revisão na postura das nações ricas quanto ao uso da água. A primeira medida seria dar um valor financeiro mais elevado para a água, bem como para os bens que consomem muito recurso no processo produtivo. Medidas de eficiência hídrica também estão na lista. Porém mais do que a tradicional pregação do uso consciente, o foco deve ser em infra-estrutura, para se diminuir os vazamentos. Por fim, e talvez a mais polêmica solução, é aplicar o conceito de vazão ecológica. Ou seja, determinar qual o volume de água necessário para os rios, principalmente aqueles que têm uso intensivo ou barragens, desempenharem suas funções ambientais, como habitat de espécies e regulação do clima.

É neste último ponto – vazão ecológica – que as atenções do relatório se voltam para o Brasil. Em uma seção dedicada aos países emergentes, onde se argumenta que os erros dos países ricos podem ser evitados, a política energética brasileira recebe críticas. Afirma-se que o país está enganado ao insistir na estratégia de construir grandes barragens. A preocupação imediata dos autores é com as hidrelétricas do Rio Madeira. Segundo o relatório, as barragens poderão romper com o equílibrio da bacia amazônica. O Plano Nacional de Recursos Hídricos, aprovado em fevereiro deste ano pelo Ministério do Meio Ambiente, é visto como um avanço na gestão brasileira, pois traz diretrizes para a preservação da água. Mas a lacuna neste ponto nos torna igual aos países ricos: falta implementar.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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