Reportagens

Areia de risco

Dunas costeiras de Florianópolis são atropeladas pelo avanço imobiliário e o crescimento do turismo. Em resposta, ameaçam quem resolve se instalar sobre elas.

Fernanda Martorano Menegotto ·
2 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás

Uma casa à beira-mar é o sonho de muita gente. Nada como admirar a paisagem numa varanda espaçosa, receber amigos e familiares com os pés fincados na areia, ou, simplesmente, aproveitar um fim de tarde num pedacinho de praia quase exclusivo.

Melhor ainda quando o pano de fundo é a cidade de Florianópolis – celebrada como uma das capitais nacionais da qualidade de vida. Há pelo menos 30 anos, as belezas da ilha e suas quase 100 praias têm atraído uma leva impressionante de turistas, migrantes, empresários e aventureiros. O problema? Essa verdadeira invasão provoca a degradação contínua de dois dos mais importantes e frágeis ecossistemas locais: as dunas e as restingas.

As restingas de Florianópolis abrigam uma rica variedade de insetos, pequenos mamíferos, aves de pequeno porte e répteis. A vegetação de gramíneas, bromélias e orquídeas adapta-se bem às dunas – um solo pobre em água e matéria orgânica. Fixas ou móveis, as dunas são cruciais para a estabilização e proteção de todo esse habitat. “As dunas mantêm o equilíbrio da praia, impedindo a erosão causada por marés e tempestades. Sem contar que são excelentes objetos para estudos científicos”, explica a bióloga Cláudia Regina dos Santos, especialista em planejamento regional e urbano pela Universidade de Cadiz, na Espanha. Ela lembra também que debaixo dos montes de areia clara estão amplos lençóis freáticos. Esses reservatórios naturais de águas podem ser comprometidos se a ação do homem não for estancada.

Expansão sem limite

Dados recentes do Atlas de Evolução dos Remanescentes Florestais e Ecossistemas Associados no Domínio da Mata Atlântica, publicados pela ONG SOS Mata Atlântica em 2000, mostram que, num período de cinco anos, a área de restinga em Florianópolis diminuiu quase 13 hectares. É mais do que a devastação de todos os outros ecossistemas, como a Mata Atlântica e os manguezais. O avanço imobiliário é o maior vilão. “As pessoas ocupam os terrenos impróprios para construção e destroem a vegetação para descaracterizá-la e não ter problemas com a fiscalização ambiental. Dizem: ‘Já estava degradada quando cheguei’”, revela Cláudia.

Mais tarde, porém, os ocupantes sentem os efeitos disso. O solo arenoso é altamente permeável debaixo das restingas, sem contar que as ocupações urbanas podem levar ao comprometimento do lençol freático e da balneabilidade da praia, pelo lançamento irregular do esgoto doméstico.

A profusão de pousadas, hotéis e casas de veraneio nas praias do norte da Ilha – refúgio de nove entre dez turistas da alta temporada – traz problemas que já se tornaram incontornáveis. Por conta da retirada da vegetação – que ajuda a manter as dunas fixas – as construções ficam vulneráveis à invasão da maré. A saída para quem decide morar nessas áreas é buscar medidas contra o avanço das águas. Entre elas, os projetos de recuperação ambiental desenvolvidos por biólogos para conter a areia e restabelecer, aos poucos, o cordão dunar. “Alguns moradores que já sentiram os efeitos da erosão costeira contrataram esses profissionais de instituições privadas para recuperar a área com areia e vegetação”, explica Cláudia. Mas a invasão imobiliária irradia outros problemas graves, como lixo e poluição, que podem comprometer o equilíbrio do ecossistema.

Avanço da areia

Quando não é a água que invade, é a areia. As dunas móveis — tal como nos desertos — deslocam-se com freqüência em direção às estradas e moradias perto das praias. Mais uma vez, culpa da imprudência humana ou falta de informação sobre os riscos. Na Praia da Joaquina, os campos de dunas são atração para praticantes de sandboard – uma espécie de esqui na areia. O esporte de aventura esconde mais um efeito adverso: a movimentação contínua dos sedimentos e pisoteio tendem a comprometer o crescimento de vegetação no local ao longo do tempo. “As dunas fixas foram, muitos e muitos anos atrás, dunas móveis”, explica o biólogo João de Deus Medeiros, da Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses (Feec).

Afinal, se há transgressão e malefícios, por que tantas irregularidades se perpetuam? Francisco Antônio, biólogo e fiscal da Fundação Municipal do Meio Ambiente, garante que a fiscalização é atuante, mas reconhece que é ineficiente em áreas de ocupação mais antiga. No caso de atividades que podem comprometer o equilíbrio das dunas, como o snowboard e eventos de surf que montam barracas sobre a areia, a questão ganha um novo patamar. “Há um impacto econômico. Saímos da esfera ambiental para a esfera sócio-econômica. Isso deve ser regulamentado, sim, mas é um processo mais lento”, afirma.

Para Cláudia Santos, existe contradição na atividade dos órgãos ambientais. “Eles têm que se entender. Há muitas diferenças de compreensão das legislações municipais, estaduais e federais”, explica. João de Deus acredita que há disparidades, mas sustenta que as leis acabam se complementando.

O biólogo aponta um problema de gestão e acredita numa solução mais drástica. “Boa parte dessas ocupações se dá por pessoas e organizações estáveis financeiramente. Quanto às pessoas de baixa renda que invadem esses lugares, o que se confirma é a falta de políticas sociais compatíveis com as ambientais. Mesmo assim, seria melhor remover essas moradias do que tentar outra coisa. É fato: a areia avança e, além de acidentes, isso pode acarretar até mesmo problemas de saúde como a silicose”. A areia contém partículas de sílica que, em contato contínuo com os pulmões, enrijecem os alvéolos.

Restinga de volta

A sociedade começa agir em favor de mudanças. De cada 100 ações na área ambiental movidas pelo Ministério Público, cerca de 40% dizem respeito às áreas de restinga. Pessoas físicas são responsáveis pela instauração de 29% dos processos, e pessoas jurídicas acionaram o MP em 15% desses casos. Os demais processos são movidos em conjunto.

O número deve crescer nos próximos anos. Grupos de pesquisadores se articulam nas universidades para estudar as variações nesses ecossistemas, e as ongs se engajam em trabalhos de recuperação das áreas deterioradas. Recentemente, Cláudia coordenou uma missão que contou com a ajuda da Polícia Militar, Bombeiros, Prefeitura e Universidade Federal de Santa Catarina: retirar fragmentos de pinus – árvore exótica usada na indústria moveleira – das dunas do Parque Municipal da Lagoa da Conceição. A espécie torna o solo mais ácido do que o normal, descaracterizando a flora e fauna locais.

“Recuperar é mais fácil do que se diz por aí. É um processo simples, de recomposição e revegetação. Mesmo nos casos mais drásticos”, explica João de Deus, antes de concluir com otimismo: “Apesar de tantas adversidades, ainda há estímulo. E boa vontade”.

* Fernanda Martorano é jornalista e nasceu em Florianópolis.

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