Reportagens

A coral que ninguém viu

Descoberta agora no Rio Grande Sul, cobra venenosa freqüentava há tempos os museus escolares e de universidades, sem que alguém se desse conta da raridade.

Cristina Ávila ·
12 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

A descoberta é tão recente que ainda não foi descrita para a ciência. Trata-se de uma nova espécie de cobra coral, encontrada no Rio Grande do Sul. É a maior do gênero Micrurus, podendo chegar a um metro e meio de comprimento. Sua parente mais próxima, a Micrurus altirostris, chamada coral-verdadeira, tem em média 60 centímetros. Foi uma baita surpresa para os pesquisadores gaúchos, que ainda não a batizaram e estão na fase de descrição científica do réptil.

“O quadro das cobras existentes no Rio Grande do Sul era relativamente bem conhecido. Encontrar aqui uma espécie de tão grande porte foi uma surpresa. Até porque, pelas características físicas, é venenosa. E as cobras venenosas chamam sempre muita atenção, por causa dos acidentes. Encontrar um novo vertebrado, terrestre e grande, foi realmente uma descoberta. Essa é uma cobra rara”, comemora Márcio Borges Martins, pesquisador da Fundação Zoobotânica do estado (FZB), que trabalha na descrição da serpente.

Os cientistas acreditam que a nova espécie seja endêmica, ou seja, que ocorra somente no Rio Grande do Sul, nas regiões do Planalto Médio e na Campanha. No estado, existem apenas mais dois tipos de cobras corais. “Temos a comum e uma segunda espécie que encontramos em 2000, no oeste, mas que também ocorre no Paraná”, comenta Martins. A nova cobra vem engordar uma pequena lista de répteis. São conhecidas apenas outras nove espécies de cobras venenosas no Rio Grande do Sul, entre as cerca de 70 que vivem no estado.

“A coral está entre as espécies de serpentes extremamente venenosas”, explica o pesquisador. Tem composição química de veneno e algumas características físicas semelhantes às temidas najas asiáticas. As corais estão presentes entre o sul dos Estados Unidos e a Argentina, e têm mais de 20 espécies no Brasil, em todos os estados.

A descrição da nova serpente está sendo coordenada pelo professor Marcos Di Bernardo, da Faculdade de Biociências e do Laboratório de Herpetologia do Museu de Ciências e Tecnologia da PUC. Ele recebeu o exemplar vivo da pesquisadora Noeli Zanella, da Universidade de Passo Fundo. Para auxiliar no trabalho, os pesquisadores pediram a colaboração de um especialista em corais, Nelson Jorge da Silva Júnio, da Universidade Católica de Goiás (UCG). A tarefa deverá ser concluída nos próximos 30 dias. Depois, o artigo com a descrição da espécie será encaminhado para divulgação em revistas científicas.

Os estudos das serpentes são feitos pelos pesquisadores em trabalho de campo. Geralmente eles passam semanas em uma região para encontrar exemplares. “Nessas viagens, a gente sempre dá uma escapada e vai às escolas. Os professores de Biologia costumam ter um pequeno museu para as crianças e isso é muito útil, pois com eles temos um indicativo da fauna que podemos encontrar em campo”, conta Márcio Martins.

Foi assim que, há cerca de quatro anos, em uma escola do município de Sarandi, ele encontrou pela primeira vez a nova coral. Viu que era diferente, mas não tinha garantia de sua procedência. “Poderia ter sido coletada em outro estado ou até outro país”, explica. As dúvidas se desfizeram quando encontrou outros exemplares na Universidade de Passo Fundo. Ninguém havia se dado conta de que guardavam uma raridade. Os cientistas então começaram a investigar até encontrarem cerca de duas dezenas de exemplares da espécie recém-descoberta entre as 800 corais que fazem parte das coleções in vitro das universidades gaúchas. A pesquisadora Noeli Zanella encontrou, então, um exemplar da coral viva. E a levou para a PUC.

Pessoas comuns também contribuem com as investigações científicas. Como o agricultor Germano Justo, de 67 anos, conhecido colaborador dos cientistas da FZB e PUC. Ele mora em Dom Pedro de Alcântara, a cerca de 30 km da divisa com Santa Catarina, no litoral gaúcho. O município tem 3 mil habitantes, a maioria descendentes de alemães, e faz parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Germano estudou até a 5ª série, mas é doutor em natureza e especialista em cobras.

“Não tenho medo. Elas avisam quando vão morder. Uma bate o guiso, outra se encolhe…”, ensina. Há muitos anos, ele envia exemplares de serpentes ao Laboratório de Herpetologia da PUC, o que contribuiu para que os pesquisadores conhecessem profundamente a região onde vive.

A intimidade de Germano com as cobras já lhe rendeu várias picadas. Inclusive da cobra verde da foto acima. Ele reagiu passando a mão na gota de sangue, com ar de descaso. Parece cena, para aumentar ainda mais o espanto de quem o observa. Com as venenosas jararacas, porém, é mais cuidadoso. “Essa, se pegar de jeito, é um tombo”, comenta, sem tirar o olho da jararaca que mantém nas mãos, com a cabeça imobilizada.

“Aqui, o clima é bom pra cobra. Dificilmente passa de 30 graus ou baixa de quatro ou cinco, e tem geada fraca. Só esfria mesmo nas áreas abertas”, afirma Germano. “As cobras não suportam nem muito frio, nem muito calor. Se o inverno for rigoroso, elas não saem, ficam dormindo, inconscientes. Comem pouco. No sol muito quente, elas morrem”, relata.

Márcio Martins atesta que o velho é um conhecedor desse pedaço da Mata Atlântica. Germano é guia ecológico por instinto. “Aqui tem boipeva, cruzeira, caninana, cobra verde, cipó, muçurana. Tinha muita, mas diminuiu uns 40% de uns 15 anos pra cá”, descreve. Ele enxerga o invisível. Vê o pica-pau camuflado pelas folhas das árvores e identifica até rastro de lontras na água – se é que isso é possível. “Elas estiveram pescando à noite, por isso a cor amarelada na água, diferente do resto do arroio”. E, como um gurizinho levado, gosta de espantar os morcegos que dormem durante o dia no oco das árvores.

Germano anda e não pára de falar, sempre seguido por três cães vira-latas. “Já ouvi dizer que serpente mama em vaca e até em mulher que tem criança pequena…”. Isso os cientistas não confirmam. “São crendices populares como essa que motivam o medo e a matança indiscriminada. A população costuma matar cobras venenosas e não-venenosas. Por pânico. Dizem até que as serpentes têm poder de hipnotizar pessoas e animais, e que têm parte com o demônio”, diz a coordenadora do Núcleo de Ofiologia de Porto Alegre, Moema Leitão de Araújo.

A cientista, porém, não nega que as cobras têm seu poder de sedução: “Eu adoro esses bichos, sou apaixonada. São animais sem membros e que desempenham funções perfeitas. Caçam, comem, se reproduzem, se escondem. São importantes para o equilíbrio ecológico e cada vez mais importantes para a medicina. Das cobras se extrai material para colas cirúrgicas e para a cura de vários tipos de câncer. O veneno das serpentes têm proteínas, vitaminas, sais minerais, é uma composição incrível”.

* Cristina Ávila é jornalista em Porto Alegre, especializada em Divulgação Científica pela Universidade de Brasília (UnB). Cobriu meio ambiente para o Correio Braziliense por seis anos.

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Comentários 2

  1. Samuel diz:

    Achei que tinha ficado maluco,uma coral gigante (porque já vi várias,mas todas pequenas,tipo uns30cm),mas essa cobra foi imprecionante,além de enorme muito rápida, vermelha e preta,e com cabeça triangular,parecia até uma cruza de coral com as enormes jararacas que tem por aqui,ela entrou num buraco,na terra,


  2. Samuel diz:

    Ainda bem que eu não fui o único a ver uma coral de +ou- um metro e meio no meu quintal, mesmo morando no meio da montanha cheia de mato nunca havia visto nem ouvido falar de uma assim