Reportagens

Os demolidores

Na França, um grupo briga para impor limites de tamanho e quantidade a anúncios publicitários espalhados pelas ruas. Em junho, as ações vão a julgamento.

Isabel Drigo ·
19 de maio de 2006 · 18 anos atrás

O espírito revolucionário dos franceses dá novos sinais, e não é através de protestos contra a lei do Contrato Primeiro Emprego (CPE), de autoria do primeiro-ministro Dominique de Villepain e que incendiou Paris há alguns meses. A vontade de mudar o status quo está nas ações de um grupo autodenominado des déboulonneurs, ou os demolidores. A proposta deles é libertar as paisagens francesas dos anúncios publicitários.

Em seu site oficial, o movimento deixa claro ser contra o sistema publicitário em si por ele incitar o consumo exagerado, o esbanjamento e os comportamentos individualistas e irresponsáveis. Além disso, a publicidade seria causadora de desequilíbrios sociais e ambientais por privilegiar anunciantes poderosos e ocultar os danos causados pelas indústrias. O texto de apresentação também lembra que são os consumidores que pagam pelos anúncios, já que os custos estão embutidos no preço dos produtos. Curiosamente, a expressão des déboulonneurs também significa aquele que deseja acabar com uma reputação.

Para este grupo os cartazes e outdoors são intoleráveis. Por ser um tipo de publicidade da qual não se pode escapar, eles o consideram uma agressão.“Somos livres para ligar ou não a televisão, ou comprar ou não um jornal. Mas não somos livres para circular sem sermos confrontados com um incessante desfile de imagens e slogans”, acusam.

Se algo até aqui soou como radicalismo, é o máximo que se tem. O movimento iniciado no fim de 2005 age de forma organizada e não-violenta. O método dos déboulonneurs é chamar a atenção das autoridades e dos cidadãos franceses por intermédio de ações coletivas que se traduzem em escalar painéis de publicidade gigantes e pichar com spray frases como:“Espaços públicos, lucros privados”, “Perseguição psicológica” ou “Publicidade é igual a violência”. Apesar da prática, eles se recusam a serem reconhecidos como pichadores. Afirmam que não ocultam suas ações e que faz parte da estratégia do grupo aguardar a chegada da polícia para assumir publicamente a ação.

Embora apenas duas ou três pessoas efetivamente executem a escalada e pintura dos painéis, outros distribuem informativos sobre os motivos do protesto e um grupo anima a discussão usando microfones. Por fim, todos aguardam a chegada dos policiais.

O primeiro ato aconteceu em Paris, mas rapidamente os déboulonneurs ganharam representações em outras cidades francesas. O grupo de Montpellier, no sul da França, debutou em fevereiro nas ruas, mas já conseguiu o que é considerado pelos organizadores uma vitória: um processo formal que julgará os atos praticados. A audiência está marcada para 23 de junho e a expectativa é que a publicidade irregular comece a ser questionada.

O que há de errado?

O avanço da publicidade nas grandes cidades não é novidade. Mas em um país como a França, a tomada das paisagens causa certo estranhamento. Se os gigantescos painéis luminosos na avenida Champs Élisée com o rosto da atriz norte-americana do momento, vendendo o mais novo batom da moda, podem já não causar grande impacto para quem conhece Nova Iorque ou convive com as ruas e avenidas de São Paulo, a proliferação de painéis nos pequenos bairros franceses demonstra que a febre de comprar e vender vem suplantando o desejo de preservação das paisagens.

Os déboulonnueurs contestam as permissões para instalação de painéis de até 12 m² e defendem que o tamanho máximo permitido passe a ser de 50X70 cm, para qualquer anúncio. Na atual legislação francesa que regula a publicidade em espaços públicos, esse é o tamanho máximo permitido quando, por exemplo, uma associação quer veicular uma campanha. Segundo os ativistas do movimento, a publicidade comercial, além de ser privilegiada nas dimensões permitidas, ainda se beneficia da condescendência dos governos locais que fazem “vista grossa” quando a lei é infringida com a instalação de painéis com tamanhos irregulares. Mas o movimento contra os abusos da publicidade na França não se restringe às ações dos déboulonnueurs. Outros grupos organizados também discutem a questão e veiculam suas campanhas e idéias
na internet.

Um novo tipo de movimento

Os déboulonnueurs se enquadram num tipo de movimento apelidado na França de “Collectif”. Não se trata de uma associação formal, no sentido de que não possui registro legal, não tem presidente nem conselhos, nem estatutos escritos. É uma organização de pessoas que partilham os mesmos interesses e idéias e costuma ser composta por gente de várias faixas etárias, classes sociais e níveis de escolaridade. O traço mais comum parece ser um aguçado espírito de cidadania e inconformismo. Há “collectifs”, por exemplo, que defendem o direito de estrangeiros e imigrantes.

Mas se não há regras escritas para a adesão, regras tácitas existem. Na collectif des déboulonnueurs a condição para a participação é a não individualização da ação. Os atos devem ser assumidos de forma solidária por todos. Alguns integrantes relatam que a atitude da polícia, geralmente, é somente prender quem foi pego pintando o painel, mas a atitude esperada é a de que todos os presentes reivindiquem a autoria do ato. No tribunal, ainda que os indiciados e chamados a depor sejam apenas os que foram vistos em ação, os demais membros têm o dever de comparecer, levantar-se e reivindicar a co-participação. Segundo os integrantes do movimento, essa atitude é estratégica e força o juiz a anotar o nome de todos que se levantam e a ouvir suas razões.

Além de Paris e Montpellier, há representações dos déboulonnueurs nas cidades de Lyon e Rouen e as ações costumam acontecer simultaneamente. Normalmente, elas são marcadas para a quarta semana do mês. A próxima está prevista para 26 de maio. Segundo os organizadores, os protestos só vão cessar quando o tamanho das peças publicitárias for delimitado em 50×70 cm, quando houver um número limite de outdoors para cada marca – para dar visibilidade igualitária a todas, e quando o número de cartazes expostos tenha alguma proporcionalidade com o número de habitantes da cidade.

* Isabel Drigo é formada em jornalismo e atualmente faz doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo. No começo do ano, esteve na França.

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